25 de novembro de 2012

Corpoesias no 'Cesta de Dança - 2012'

Seis coreografias, dentro do evento Cesta de Dança - 2012, se inspiram em obras literárias, cidades, elementos naturais e singularidades do corpo, gerando experiências que interpelam e emocionam. Nas noites de 23 e 24 nov. 2012, a Sala-Teatro Julson Henrique, do Espaço Quasar, foi palco para criações independentes de bailarinos da Quasar Cia de Dança e demais convidados.

"Irene", de Marcos Buiati

“Irene”, de Marcos Buiati, põe em relação três personagens inspirados nas ‘cidades invisíveis’ de Ítalo Calvino. Sutilezas circenses remetem as possibilidades interpretativas para imagens de filmes como “O Palhaço” e “O Labirinto do Fauno”, criando uma rede de associações entre a gestualidade dos dançarinos e as experiências do espectador. Entre mãos que enxergam, olhares que tocam, tiras de tecido, bolinhas de gude e guarda chuva, lúdico e afetivo tecem alegorias dramáticas por meio dos movimentos ternos e precisos de José Villaça, Marcos Buiati e Paula Machado.
 
“Retalhos de Cetim” entrelaça a poesia musical de Benito Di Paula, a acuidade coreográfica de Valeska Gonçalves e a visceral interpretação de Flora Maria. Enquanto fragmento do Espetáculo “Nega Lilu”, da Nega Lilu Cia de Dança, inspirado no conto “Sem Palavras” de Larissa Mundim, este solo condensa instantes em que sensações de ambas as personagens do conto coexistem no mesmo corpo. A coreografia exala sensualidade, paixão, saudade e convida o olhar a vislumbrar diferentes formas de amar.

“Stamina”, coreografada por Gabriela Marques, mistura diferentes intérpretes e inspirações como elementos naturais, desejos e a relação mente e cosmo. Nessa rede holística, os jovens dançarinos alternam formações coreográficas visualmente interessantes. Entre saídas e entradas, determinadas formas de ocupar o espaço cênico e um figurino padronizado em tom preto, o trabalho denota escolhas um tanto datadas no que tange a organização coreográfica. A movimentação densa e maleável é instigante e, por vezes, sugere que a intenção parece ser maior que a dança.
"Barcelona", de Martha Cano

“Barcelona”, coreografada por Martha Cano, com gestos dedilhados parece flertar com a possibilidade de ser ora ilustração ora ironia da música. Com nuances espanholas e inspirada em elementos de escritos de Suzana Cano, a movimentação cria cenas brincantes que sugerem interligações entre infância, afetos, galanteios e aproximações.

“La Cosa”, enfatiza a sensibilidade da coreógrafa Valeska Gonçalves em perceber as particularidades do corpo da intérprete Martha Cano. Criando tensões entre mobilidade, flexibilidade e impossibilidade de deslocamento, a coreografia dá destaque para certas capacidades do corpo, fazendo destas, motes para a criação. Ao se inspirar no, tematizar o, se dar a ver no corpo, ‘La Cosa’ abre possibilidades para ver/pensar/entender o corpo não só como suporte da dança e da representação, mas como sujeito que dança.
"No Crivo da Rosa", de João Paulo Gross

“No Crivo da Rosa”, de João Paulo Gross, mergulha fundo no universo poético-literário de Guimarães Rosa e dilata tempos, imagens e movimentos. Criando imagens que se metamorfoseiam, a coreografia (co)move e guia o sentir-pensar do espectador por caminhos imaginários que podem ser próximos, distantes, tortuosos, sem volta. Intercalando pó, poros e poesia, os corpos dos intérpretes João Paulo Gross e Carolina Ribeiro traçam descobertas, inventam percursos, trocam afetos, um no outro, um com outro, um para o outro. Simplicidades e complexidades na configuração coreográfica situam uma pesquisa de movimento que ora perambula no quintal daquilo que já sabe ora salta a cerca desse quintal denotando algo novo e singular.

Entre memes conhecidos e replicados, alguns já transformados e outros inéditos, conforme os processos evolutivos naturais-culturais de expansão/transformação da dança, as coreografias que integraram o Cesta de Dança – 2012, cada uma a seu modo, instigam diferentes gostos, afinidades, identificações, opiniões, comentários e modos de ver do público goiano. Este, cada vez mais bem servido com eventos, pesquisas e criações de dança de diferentes procedências, configurações e estilos.


Odailso Berté
Coreógrafo, dançarino e pesquisador em dança contemporânea
Doutorando em Arte e Cultura Visual - UFG
Mestre em Dança - UFBA
Licenciado em Filosofia - UPF
Imagens de Odailso Berté e Larissa Mundim

Quando a dança 'Por Acaso' gera (des)construções

Pensando sobre crítica de dança, apreciação artística, análise estética... Ser mais romântico ou mais rigoroso? Ser marxista, positivista, semioticista, subjetivista? Ser popular ou erudito? Vulgar ou enrustido? Descrever uma experiência de construção de sentidos/significados? Narrar uma particular relação com a obra/evento/dança? Dizer ‘gostei’ ou ‘não gostei’? Apontar ‘que bom’, ‘que tal’, ‘que pena’? Determinar o que eu ‘acho’ que o autor quis dizer? Direcionar o olhar dos outros com o meu ‘achado’? Os caminhos se cruzam, as possibilidades se misturam, as vontades se abraçam.

Skatistas, patinadores, uma galera do ‘cachimbo da paz’, casais apaixonados, homens que usavam o WC feminino, música sendo ensaiada, nuvens prometendo chuva, uma bela de rosa e preto que performava poses sensuais... Entre tudo isso e tantas outras formas de vida, ação, movimento, que compunham o cenário da Praça Universitária de Goiânia/GO, no dia 24 nov. 2012, aconteceu o “Por Acaso – Tardes de Improviso”, sob coordenação do Por Quá Grupo Experimental de Dança, dirigido por Luciana Ribeiro.

Como o próprio grupo descreve, Por Acaso – Tardes de Improviso é uma jam session que busca reunir artistas para improvisar músicas e danças quentíssimas. Costumeiramente, acontece na Fábrica Cultura Coletiva, todavia, por ocasião da Mostra de Arte Insensata (22 a 24 nov. 2012), a sessão de improviso deslocou-se da Fábrica para a Praça. Dialogando com a cidade e com artistas, o Por Acaso objetiva criar encontros, intervenções e experiências sonoras, físicas, plásticas e visuais.

Esses entrelaçamentos de sensações/sentidos/experiências – que não prescindem do pensamento, pois tudo está junto no corpo – possibilitam modos de apreciação da dança que se articulam entre o assistir e o dançar junto. Ver e fazer seduzem um ao outro e se (con)fundem, abrindo possiblidades de apreciação, envolvimento, diversão, criação, diálogos sensíveis e estéticos. Os corpos, literalmente, caem na dança. Do mais ao menos iniciado, todos dançam, esgarçando as fronteiras da dança enquanto arte, área de conhecimento, profissão, entretenimento, evento social, ação-pensamento do corpo. Quer arte mais (in)sensata que isso?

Por Acaso possibilita pensar-sentir-fazer questões em torno da acessibilidade a artefatos e obras artístico-culturais; a democratização da experiência estética; a desfronteirização palco/platéia; criações coletivas; relações corpo e ambiente; contemplação e participação; crítica e apreciação; etc. Múltiplos vieses de interpretação emergem quando a dança aponta para além de si própria, abrindo canais para, por meio do corpo, ver o mundo.

Suor, ideias e sentimentos emergem do corpo ao ver os demais corpos imersos na dança e ao deixar-se envolver, dançando junto. E o crítico, é o que fica diante de? É o que se relaciona com? É o que discursa sobre? É aquele que fala o que ele próprio faria se fosse o artista?  Lembrando o filósofo Jacque Derrida, talvez a ação do crítico possa ser entendida como uma (des)construção. Crítico é o (m)eu corpo que, tocado pelo que vê, imerso no que experimenta, configura uma fala acerca disso. Esta fala pode não ser mais o visto e experimentado e sim uma desconstrução, uma outra construção, um dos possíveis modos de ver, dizer, interpretar aquilo.

Odailso Berté
Coreógrafo, dançarino e pesquisador em dança contemporânea
Doutorando em Arte e Cultura Visual - UFG
Mestre em Dança - UFBA
Licenciado em Filosofia - UPF
Fotos de Odailso Berté

15 de novembro de 2012

Corpografias de Nega Lilu

Romeu e Julieta, A Bela e a Fera, Alexandre e Heféstion, Frida e Diego, Lampião e Maria Bonita... Nega e Lilu. Reais e fictícias, épicas e populares, estas e outras histórias compõem nosso imaginário e traduzem diferentes formas de amar. Misturando sutilezas e intensidades afetivas, o espetáculo “Nega Lilu” impacta, comove e questiona acerca da busca da plenitude do amor, em apresentação realizada no dia 11 de novembro de 2012, no Teatro Goiânia.

Flora Maria e Valeska Gonçalves (foto de Lu Barcelos)
 
Com ousadia e sensibilidade, a coreógrafa e bailarina Valeska Gonçalves da Nega Lilu Cia de Dança faz uma transposição do verbal ao gestual sem produzir caricaturas ou personagens estereotipados. Em vez de narrar linearmente o romance, a coreografia descarta obviedades captando e traduzindo sensações e estados das protagonistas. Estes sentimentos passeiam pelos corpos das bailarinas seduzindo e engajando o público a descobrir, encontrar, construir quem é Nega e quem é Lilu. As surpresas, emoções, tensões e reflexões geradas pelo espetáculo, criam uma atmosfera de diálogo entre arte e vivências, possibilitando que o espectador entrelace a dança com suas próprias experiências afetivas.

 Os auges e tropeços, tão característicos nas relações amorosas, ganham visceralidade com a instigante interpretação das bailarinas Valeska Gonçalves e Flora Maria. Gestos detalhados e delicados acentuam a profundidade de pormenores que estabelecem a reciprocidade entre duas pessoas. A sonoridade de um sapateado flamenco entrecortado exacerba a lástima e, ao mesmo tempo, a fortaleza de uma mulher lidando com a ausência.
 
Valeska Gonçalves (foto de Lu Barcelos)

 A movimentação de um corpo em contato com uma banqueta sugere nuances de uma sensualidade feminina que se enuncia entre desejos e distância, escorregando dos fios de cabelo ao salto do sapato. São genialidades coreográficas que possibilitam ver a dança não apenas como algo sentimentalista, mas como uma inteligência do corpo que não separa sentir e pensar.
 
Flora Maria (foto de Lu Barcelos)

O espetáculo de dança “Nega Lilu” constrói corpografias a partir de um conto contemporâneo de Amor, mediado por contatos físicos e virtuais, presenças e ausências. “Sem Palavras”, escrito por Larissa Mundim, também vem sendo comentado, transformado e difundido pelas linguagens da literatura, audiovisual, body art, street art e performance.

Na dança e no conto, os corpos escrevem uma história que vale cada instante e inscrevem no corpo do espectador a sensação de que o amor é eterno no tempo em que ele acontece. Estas escritas do/no corpo, ao passo que nos deixam sem palavras, também possibilitam a enunciação de mais de 100 palavras sobre amor, permanência, efemeridade, amadurecimento... Que tão bem descrevem os ciclos de vida de cada pessoa.


Odailso Berté
Coreógrafo e pesquisador em dança contemporânea
Doutorando em Arte e Cultura Visual - UFG
Mestre em Dança - UFBA
Especialista em Dança - FAP
Licenciado em Filosofia - UPF

4 de novembro de 2012

Entre Pina Bausch e Madonna, uma dança contemPOPrânea

Você já ouviu expressões do tipo: A dança... “Vem lá de dentro”... “É um dom divino”... “Brota da alma”... “É a expressão do sentimento”... Ou... “É coisa do capeta”? Ingênuas ou equivocadas, estas são formas como alguns veem e entendem a dança. Lembra do filme “Footloose” de 1984? Ele narra um fato curioso, a proibição da dança numa cidade. O reverendo de uma igreja cristã busca impedir o movimento, a liberdade, a expressão do corpo, do “pé solto – footloose”, como diz o título. Essa história é antiga e real. Dança e corpo foram, por muito tempo e ainda hoje, associados à sensualidade, ao sexo, ao pecado, ao demônio. A alma, o espírito, a mente, o pensamento, a teoria, foram erroneamente entendidos como superiores e separados do corpo, do afeto, do prazer, dos sentimentos, da prática.

Kevin Bacon em "Footloose" (1984)

Em “Footloose”, a rebeldia de Ren McCormick (Kevin Bacon) mostra-se no seu corpo: em seus modos de se mover, dançar, falar, se comunicar com os corpos submetidos ao conservadorismo e de enfrentar os corpos conservadores. Quando um pintor faz sua obra, o quadro que ele cria é um objeto externo ao seu corpo. Já um dançarino, quando faz sua obra, a dança, esta não está separada do seu corpo, ela é o seu corpo. Nesse sentido, podemos entender que o corpo é o lugar e o sujeito da dança, ou ainda, que dança é corpo.

Na dança contemporânea nem sempre o coreógrafo cria e os dançarinos repetem. Os modos de configurar a coreografia podem ser compartilhados e misturados com várias outras formas e técnicas artísticas. Ações como andar, correr, sorrir, falar, etc., podem ser vistas no palco, criando um estilo de dança que, muitas vezes, borra as fronteiras entre a arte e a vida cotidiana. Entre os tantos artistas, nacionais e internacionais, destaco o diferenciado trabalho da coreógrafa alemã Pina Bausch (1940-2009), recentemente homenageada pelo cineasta Wim Wenders com o filme “Pina” (2011) e que já tinha aparecido em “Fale com Ela” (2002) de Pedro Almodóvar e “E La Nave Va” (1983) de Federico Fellini. O modo de Pina coreografar era surpreendente. Ela fazia perguntas aos seus dançarinos e eles deveriam respondê-las com movimentos, palavras, gestos relacionados às suas experiências vividas. Com as criações de seus dançarinos Pina organizava as coreografias e espetáculos.

Espetáculo "Bamboo Blues" (2007) de Pina Bausch. Foto de Jong-Duk Woo.

Com esses modos de pensar-fazer dança tem sido possível compreender que o corpo não é uma máquina, a prisão da alma, o lugar do pecado ou somente um repetidor de passos. Mas sim, que o corpo pensa e pode organizar e executar a dança a partir das suas experiências. Pensar é uma ação do corpo. Próximo do que diz a crítica de dança Helena Katz, a dança pode ser compreendida como pensamento do corpo. Ou seja, quando o corpo dança, está pensando/sentindo/comunicando ao mesmo tempo.

Dança é arte e uma área de conhecimento/criação/pesquisa, um curso presente em várias universidades do Brasil e do mundo. Mas sem se restringir a isso, a dança está também em festas, boates, videoclipes, shows, filmes. Entendida como arte ou como entretenimento, dentro dos padrões estéticos tradicionais ou dos padrões da cultura de massa, trata-se de dança e de corpos que dançam. Não vejo maior ou menor valor na dança de um espetáculo de Pina Bausch ou na dança de um show de Madonna... Entre um corpo que assiste uma coreografia de Pina e outro corpo que sua dançando na boate ao som de Madonna.

Coreografia de "Girl Gone Wild" - MDNA Tour (2012). Foto de Rêmulo Brandão.

Demonizar Madonna como cantora de música pop – cultura de massa destinada aos prazeres do corpo e sacralizar Pina Bausch como coreógrafa de dança contemporânea – arte destinada à contemplação mental/espiritual, são atitudes equivocadas, mas muito difundidas. Madonna e Pina Bausch tiveram contato direto com a técnica de dança moderna da coreógrafa norte-americana Martha Graham (1894-1991) em NY. Nos diferentes trabalhos das artistas percebe-se o destaque do corpo, da dança e de um conjunto cênico produzido cuidadosamente. Os chamados ‘erudito’ e ‘popular’ se misturam de muitas maneiras no cotidiano das pessoas, nos mais diferentes modos como nós curtimos, consumimos, usamos, aprendemos, reinventamos ou repudiamos danças, imagens, produtos, roupas, músicas, etc.

As proibições, demonizações, sacralizações e separações já não dão conta dessa profusão contempoprânea. A neurociência tem mostrado que razão e emoção são funções do corpo e que elas operam juntas, sempre. Compreendendo que somos corpos ‘sentipensantes’, busco ver-pensar-fazer uma dança contempoprânea: que é “footloose”, dos pés soltos, do corpo livre, indomável, criativo... Que borra fronteiras, separações, preconceitos... Que está misturada com a vida cotidiana, com os afetos, experiências, prazeres, desejos, sentimentos e pensamentos dos corpos.

Odailso Berté
Coreógrafo e pesquisador em Dança Contemporânea
Doutorando em Arte e Cultura Visual - UFG
Mestre em Dança - UFBA
Especialista em Dança - FAP
Licenciado em Filosofia - UPF

Imagens captutadas aqui, aqui e aqui.