18 de outubro de 2015

Solidão Pública: o estar só que nos questiona

Adilso Machado em "Solidão Pública", 16/10/2015.

A solidão dele seria também nossa? Que solidão vertiginosa é essa que em vez de silêncio e reclusão sacode o corpo freneticamente como se estivesse numa have particular? Que corpo solitário é esse que soa como um "the walking dead" plugado numa tomada de 220 volts?

Adilso Machado, com a coreografia "Solidão Pública", apresentada no dia 16/10/2015, no Theatro Treze de Maio de Santa Maria/RS, instaura atravessamentos perceptivos que surpreendem a experiência estética acostumada a 'gostar' ou 'não gostar', 'achar bonito' ou 'achar feio'. Está aí uma forma de dança que empurra o corpo espectador nos precipícios interpretativos onde a dança é uma densa névoa e não floquinhos de neve.

Com a propriedade de um corpo atento a como seu treinamento se conecta com sua dança, seus estados corporais, articulados em cena, desenham formas, imagens, movimentos que não fornecem representações caricatas da solidão. Antes, desatam modos vertiginosos de ser e estar sozinho. Mesmo acompanhado em cena pelo DJ, que manipula a trilha em tempo real, Adilso é um corpo dançando só, imerso, envolto e comprometido com a configuração de sua dança.

"Solidão Pública" é uma dança que incomoda pois subverte a percepção estética convencional tirando o espectador do lugar comum de achá-la bonita ou feia. Pessoas na plateia se contorcem, conversam, alteram a respiração, arregalam os olhos e certamente se questionam: "Por que esse corpo faz o que faz em cena?". Conforme Katz (2004), a dança que causa esse tipo de tensão e indagação pode ser chamada de contemporânea. Não que a dança de Adilso necessite de classificação ou caiba dentro de um estilo de dança.

Não apenas pelo simples fato de ser um solo, mas, ao dançar só sua "Solidão Pública", Adilso possibilita acompanharmos seus trajetos de movimentação despertando-nos a preocupação de que a qualquer momento ele vai sucumbir, de que ele não vai resistir. Parece que a possibilidade de cansar, prostrar, cair, ceder, torna-se potência para resistir e (trans)formar o movimento e assim escamotear as possibilidades de enjaular a solidão em significações fáceis.


Odailso Berté
Doutor em Arte e Cultura Visual   
Mestre em Dança
Especialista em Dança  
Licenciado em Filosofia 

12 de outubro de 2015

Dançar Frida Kahlo é narrá-la: review do espetáculo Me Kahlo Sashay Away


Dançarino Crystian Castro no Espetáculo Me Kahlo Sashay Away (2015)
Foto: Patricia Cichelero
A abertura de sentidos de uma obra de arte se dá em detrimento de seus significados preestabelecidos (sic), já dizia Eco, não a ninfa, o senhor italiano, aquele que pode ser nobel de literatura esse ano.
A arte é inocente da obscuridade que projetamos num espetáculo. Esse negócio de luzes sobre a sensibilidade, de redução do sublime ao objetivo, é simplesmente absurdo. Claro que todos nós, em maior ou menor medida, nos sentimos burros diante de fatos com os quais não sabemos o que fazer: em qual gaveta do meu pensamento cotidiano irei colocar um bailarino sendo lenta e sincopadamente desenrolado por uma longa mangueira de jardinagem? Pessoas passando umas pelas outras com um sapato de salto alto em cima da cabeça? Na gaveta do absurdo, do nonsense - alguém responderia. De fato, é um tanto isso que a arte se propõe explorar – o absurdo.
Mas o preocupante é quando esse engavetamento de impressões não consegue se desgarrar do cotidiano, quando ficamos simplesmente estupefatos com o fato de estarmos esperando o desvelamento dessa coisa mística que é a arte, e vermos, ora essa, uma inexplicável mangueira de jardim.
É claro que a mangueira, no caso, pode ser uma referência (in)direta às bandagens que se enrolavam e desenrolavam em torno de Frida após seu acidente de bonde, e a expressão de tédio profundo do bailarino é demasiado próxima a de Hayek na cena equivalente no filme (FRIDA, 2002). A mangueira volta no final, como o clássico fechamento do (ou início de um novo) círculo, só que agora envolve outro dançarino e - minha opinião - a remontagem de uma das telas de Frida. É quase claro, pra mim, que aqueles sapatos em cima da cabeça formavam um ângulo de cunha com as mãos dos dançarinos e insinuavam sombrinhas burguesas em meio a convenções sociais de época: a introdução de Frida aos salões, quem sabe. Mas a despeito desses significados, ou possíveis significados, o preocupante é que muitas vezes a estupefação chega a interromper o fruir estético, ou mesmo aquela sensação de tentar fingir que sabia o que estava acontecendo infunde-se em nossa visão do agora.
            Saber, no fim, não é a questão. Se você não conhece a biografia de Frida, não deve esperar que um espetáculo lha forneça. Mas, veja bem, nem por isso o espetáculo deixa de ser uma narrativa, nem por isso ele não narra Frida. E, enquanto, uma narrativa pictórica e corporal que ele é, nos trará impressões mais diretas ainda que palavras, já que sem elas não há perda de tradução, e até mesmo aqueles que nunca ouviram falar de Frida podem sentir o que cada um daqueles lindos personagens, lúdicos e enfermos,  que se fundiam e se visitavam, expressava, e como cada um narrava uma Frida com seu próprio corpo. 
            E que há de mal em se perder? Que há de mal em suas lágrimas caírem e você não saber se é por compaixão biográfica ou paixão estética?
            Os quadros, as cores, os sofreres e os traços de Frida passeavam nas feições, motes gestuais, e ritmos dos moços e das moças dançantes. Passeadores entre flores, as flores nossas e de Frida.
Havia mo(vi)mentos nos quais era o puro corpo falando e nós espectadores entrávamos numa espécie de transe ancestral diante do movimento de sons e corpos. E no fundo era isso o que senti com toda a força e me arrebatou na noite de sexta (02/10): o movimento. A capacidade da dança compor uma narrativa dinâmica e arrebatadora me impressionou, pois costumo buscar tal coisa em literatura, ou seja, em palavras. Ali era tudo gestos, uma beleza que nos fazia ora sorrisos despronvindos de razões ora lágrimas inexplicadas.
Review do espetáculo Me Kahlo Sashay Away, direção de Odailso Berté, criação e produção do Laboratório Investigativo de Criações Contemporâneas em Dança (LICCDA), do Curso de Dança – Licenciatura da UFSM. O grupo promete ainda para esse mês de outubro algumas intervenções no cotidiano de nossa Santa Maria com especial intuito de abrir o debate acerca da dança/arte contemporânea. Atentemo-nos, e aguardemos as bonitezas que ainda estão por vir.

Por GIONATAN PACHEGO
Bacharel em Filosofia - UFSM