26 de setembro de 2010

Quando a imagem da tela vem das imagens da vida


“Não quero falar muito. A melhor maneira de matarmos um filme é falarmos sobre ele”. Quando um mestre fica sem saber o que falar, gostaria de ter um duplo de si, fazer um dueto consigo mesmo e cantar seu próprio acompanhamento. Este é o drama do diretor italiano de cinema Guido Contini (Daniel Day-Lewis) que se vê sem inspiração para o roteiro de seu mais novo filme. Sua imaginação não teve treinamento moral, ela é o jardim de Deus onde brincou o diabo.

Ele deu um passo errado e todos os outros saíram errados. Sobre o que trata o seu novo filme? Ele pode contar sobre o enredo, o elenco, a música. Mas por que todos perguntam pelo roteiro? O público não está interessado no roteiro, mas em como a câmera passa de um rosto para a lua, em como se chora, sorri, enrubesce... E isso não está no roteiro... Está no cotidiano do artista, nas questões vividas, nas pessoas que mais lhe marcaram, essas sim, suas musas:

A Mãe (Sophia Loren), seu colo e afeto, uma ausência que se faz presente quando bate o desalento. Seu amparo dizia: “Olhe a lua que sorri mandando sua benção para você.” Amores virão, mas nunca como o materno que num beijo de boa noite nos mantém para sempre perfeitos. Na aflição o abraço da mãe é o sonho carinhoso do qual não se quer acordar. Mas junto da ternura ficam também os firmes conselhos: “A ninguém mais cabe achar o seu caminho, só a você”.


Saraghina (Fergie), a prostituta que o fez passar de menino a homem, que lhe ensinou como fazer uma mulher feliz apostando naquilo que a natureza lhe deu. E a puta lição de vida para sempre decorada foi: “Colha a flor antes que você perca a chance e viva o dia de hoje como se fosse o último”.


Luisa (Marion Cotillard), esposa de um marido que faz filmes e, por isso, ele vive numa espécie de sonho no qual seus atos nem sempre são o que parecem. Ele pode criar temas românticos na sua imaginação, ele engendra fantasias, as vive e as dá. Mas ele não sabe distinguir seu trabalho de seu lar. Ele é o gênio, o diretor e ela a fã, a atriz, a amante. Infinitos sonhos tiveram a compartilhar num tempo em que cantavam juntos a noite toda ao telefone. Mas, como a respiração, ele abre a boca e só saem mentiras. Seu esforço de mentir e trair é exaustivo. E exausta ela confessa: “Não me admira não ter roteiro, pois está ocupado inventando sua vida”.


Carla (Penélope Cruz), a amante, uma brincadeira de faz de conta. A menina selvagem que ao se apaixonar por esse galã (des)conhecido, foi como se entrasse num quarto errado, onde o homem, na cama, não tem a mínima idéia de quem ela seja, mas a deseja. Enquanto ele vive sua vida sem dela se lembrar, ela insiste: “Eu continuo aqui... Vou ficar aqui te esperando com as pernas abertas”.


Lili (Judi Dench), a figurinista, seu constante incentivo a criar. Atenta à vontade do público de sorrir, amar e sonhar por meio dos filmes. Essas são propriedades infantes e assim, diz ela: “Se deixar de ser criança nunca irá fazer outro filme”.


Stephanie (Kate Hudson), a jornalista deslumbrada pelo estilo e beleza do cinema italiano e do uomo romano que despe as mulheres com os olhos. Curiosa tanto em relação aos limites do que se pode mostrar num filme quanto ao que o diretor não mostra no filme. Para ela, a vida é real com o cinema italiano.


Claudia (Nicole Kidman), atriz e inspiração ao mesmo tempo, cabelo e maquiagem para um papel que não se sabe o qual. A personagem que ao invés de ser a mulher por trás dos grandes homens, prefere ser o homem. Mulher fantasia sobre um pedestal, compartimentada e escondida entre os elementos que compõem sua personagem. Insatisfeita com o amor mediado pela câmera ela se mostra real: “Não consigo continuar com esse papel”.


Sem roteiro, sem inspiração, sem elenco... Sem filme. Sem mais invenções, o mestre confessa: “Não existe filme, não posso mais fingir”. Seu corpo se aproxima dos 50, mas sua mente dos 10, ele é a pessoa que nunca cresceu. O único filme que poderia fazer agora é o de um homem tentando ter o seu amor de volta. Um recomeço, uma história de reconciliação...

Título: Nine. Direção: Guido Contini. Ação!


Quando deixamos nosso eu criança sentar em nosso colo, o roteiro da vida se abre e a criatividade desata dançando solta. Assim se mostra "NINE" (2009), do diretor Rob Marshall, fazendo da ausência de roteiro um roteiro poético e caloroso, a ponto de provocar êxtase e saudade.

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