15 de dezembro de 2012

Madonna, o corpo metáfora (MDNA Tour 2012)

Tanta ou maior que a de 2008, quando a Sticky & Sweet Tour veio ao Brasil, foi minha atual expectativa para (re)ver Madonna em sua MDNA Tour (2012). Hoje ela também faz parte dos afetos – cheios de razões – que movem meus interesses de estudo e pesquisa. Fã e pesquisador se misturam e, por mais que Adorno e Horkheimer pensassem o contrário, o ato eufórico e encantado de experienciar/cantar/dançar/chorar com o show de Madonna não está separado do ato de pensamento e construção de significados. Esse é um momento que elucida o fato de que, no corpo, razão e emoção nunca estão separadas.


O nono dia de dezembro de 2012 foi marcado pelo meu reencontro com a Rainha da música pop, a ‘girl gone wild’ que faz jus em ter o nome de “nossa senhora – Madonna”. Afinal, há que ser muito poderosa para orquestrar um espetáculo de tamanha magnitude, além de cantar (ao vivo) e dançar (eu falei dançar, não passinhos pra lá e pra cá). Bem antes do espetáculo iniciar, um ensaio trouxe Madonna e seus dançarinos ao palco. As imagens artefatos, antes vistas, tornam-se imagens ações que se movem diante dos olhos, criando refrações no corpo todo. Um pensamento/sentimento ingênuo emerge: “Madonna é de verdade”! Tão real e próxima que, como qualquer mortal, precisou se proteger do sol.


O show inicia como um missa. O cenário, uma imponente catedral com direito a monges, gárgulas, sino, turíbulo e ladainha com o nome Madonna. Ao soar uma penitente e sensual voz feminina, dizendo “Oh my God”, a catedral se abre para a entrada de um oratório suspenso que mostra a silhueta de uma mulher ajoelhada, de mãos postas, rezando a oração do ato contrição. Ela levanta, empunha um rifle a quebra os vidros do oratório para cantar “Girl Gone Wild”. Sim, é a própria Madonna, a santa que empunha um rifle, ao passo que os monges se despem e dançam sobre sapatos de salto alto. Inversões, provocações, subversões... Dicas e picardias para os conservadores religiosos (católicos, evangélicos e do diabo a quatro) e demais simpatizantes que abominam a homoafetividade. São sinais de nossa senhora – Madonna... Interpreto e obedeço, piedosamente. Amém!


Já no terceiro bloco do show, Madonna interpela o olhar do espectador perguntando: “What are you looking at?” Sugerindo questões referentes a corpo, gesto, imagem, pose, comportamento, a performance do sucesso “Vogue” é genialmente articulada e desfilada por modelos/looks que remetem a diferentes gêneros, épocas, personagens, cenários. A sequência se dá com o mashup, pra lá de sensacional, de “Candy Shop” com “Erótica” que ambienta um ousado e polido cabaré onde corpos trocam gracejos, prazeres, toques e afetos. Com “Human Nature”, Madonna se relaciona consigo mesma diante de espelhos e com mãos que buscam tocá-la, aludindo a temas como identidade, desejo, fetiche, objetificação, sexualidade. Ela encerra este momento se despindo e proferindo um caloroso e emocionado discurso em prol das mulheres de todo o mundo.


Outro destaque especial merece a dança no show de Madonna. Dançarina profissional, quase graduada em dança pela University of Michigan, ela também vivenciou a técnica de dança moderna de Martha Graham, uma das fundadoras dessa modalidade a nível mundial. Com toda essa bagagem, é de se esperar e comprovar que em seu show, Madonna e seus dançarinos não fazem da dança uma mera ilustração para a letra das músicas. Trata-se sim, de configurações coreográficas que ora convergem ora divergem com a música. São estruturas de movimento que adensam as propostas estéticas do show e propõem diferentes formas de ver, analisar, sentir, perceber o espetáculo. O corpo não é apenas um objeto virtuoso da arte, mas um corpomídia que constrói informações, imagens e metáforas para se comunicar com os demais corpos. É impressionante os modos como Madonna não simula o ato de dançar em função do ato de cantar. Pude vê-la, a menos de três metros de distância, no auge dos seus 54 anos, dando saltos, fazendo rolamentos, giros e sequências efusivas de movimento. É simplesmente... Uau! Ela acompanha, equiparadamente, os dançarinos mais jovens e ainda canta e toca. Que estrela!


Entre canções, imagens e coreografias, a ópera pop de Madonna desliza e adentra por catedral, quarto de hotel, combate, lutas, banda marcial, balizas e líderes de torcida, luau basco, cabaré, celebração mística e festiva, críticas sociais, políticas e religiosas. Uma cadência impressionante, uma tecnologia espetacular, performances arrebatadoras, um produto muito bem amarrado estética, imagética e conceitualmente que confirma a arte de Madonna como uma potência cultural e econômica consolidada e abrangente.


Mística e erótica, razão e emoção não encontram barreiras entre si quando o corpo se relaciona com algo assim. Vida longa à Rainha do pop. Que no alto dos seus sessenta anos possamos ainda ver Madonna interpelando o mundo com suas criações e, como ela mesma diz, fazendo de seu corpo uma metáfora para provocar.

Odailso Berté
Coreógrafo e dançarino
Doutorando em Arte e Cultura Visual
Mestre em Dança
Licenciado em Filosofia

Fotos de Odailso Berté 

25 de novembro de 2012

Corpoesias no 'Cesta de Dança - 2012'

Seis coreografias, dentro do evento Cesta de Dança - 2012, se inspiram em obras literárias, cidades, elementos naturais e singularidades do corpo, gerando experiências que interpelam e emocionam. Nas noites de 23 e 24 nov. 2012, a Sala-Teatro Julson Henrique, do Espaço Quasar, foi palco para criações independentes de bailarinos da Quasar Cia de Dança e demais convidados.

"Irene", de Marcos Buiati

“Irene”, de Marcos Buiati, põe em relação três personagens inspirados nas ‘cidades invisíveis’ de Ítalo Calvino. Sutilezas circenses remetem as possibilidades interpretativas para imagens de filmes como “O Palhaço” e “O Labirinto do Fauno”, criando uma rede de associações entre a gestualidade dos dançarinos e as experiências do espectador. Entre mãos que enxergam, olhares que tocam, tiras de tecido, bolinhas de gude e guarda chuva, lúdico e afetivo tecem alegorias dramáticas por meio dos movimentos ternos e precisos de José Villaça, Marcos Buiati e Paula Machado.
 
“Retalhos de Cetim” entrelaça a poesia musical de Benito Di Paula, a acuidade coreográfica de Valeska Gonçalves e a visceral interpretação de Flora Maria. Enquanto fragmento do Espetáculo “Nega Lilu”, da Nega Lilu Cia de Dança, inspirado no conto “Sem Palavras” de Larissa Mundim, este solo condensa instantes em que sensações de ambas as personagens do conto coexistem no mesmo corpo. A coreografia exala sensualidade, paixão, saudade e convida o olhar a vislumbrar diferentes formas de amar.

“Stamina”, coreografada por Gabriela Marques, mistura diferentes intérpretes e inspirações como elementos naturais, desejos e a relação mente e cosmo. Nessa rede holística, os jovens dançarinos alternam formações coreográficas visualmente interessantes. Entre saídas e entradas, determinadas formas de ocupar o espaço cênico e um figurino padronizado em tom preto, o trabalho denota escolhas um tanto datadas no que tange a organização coreográfica. A movimentação densa e maleável é instigante e, por vezes, sugere que a intenção parece ser maior que a dança.
"Barcelona", de Martha Cano

“Barcelona”, coreografada por Martha Cano, com gestos dedilhados parece flertar com a possibilidade de ser ora ilustração ora ironia da música. Com nuances espanholas e inspirada em elementos de escritos de Suzana Cano, a movimentação cria cenas brincantes que sugerem interligações entre infância, afetos, galanteios e aproximações.

“La Cosa”, enfatiza a sensibilidade da coreógrafa Valeska Gonçalves em perceber as particularidades do corpo da intérprete Martha Cano. Criando tensões entre mobilidade, flexibilidade e impossibilidade de deslocamento, a coreografia dá destaque para certas capacidades do corpo, fazendo destas, motes para a criação. Ao se inspirar no, tematizar o, se dar a ver no corpo, ‘La Cosa’ abre possibilidades para ver/pensar/entender o corpo não só como suporte da dança e da representação, mas como sujeito que dança.
"No Crivo da Rosa", de João Paulo Gross

“No Crivo da Rosa”, de João Paulo Gross, mergulha fundo no universo poético-literário de Guimarães Rosa e dilata tempos, imagens e movimentos. Criando imagens que se metamorfoseiam, a coreografia (co)move e guia o sentir-pensar do espectador por caminhos imaginários que podem ser próximos, distantes, tortuosos, sem volta. Intercalando pó, poros e poesia, os corpos dos intérpretes João Paulo Gross e Carolina Ribeiro traçam descobertas, inventam percursos, trocam afetos, um no outro, um com outro, um para o outro. Simplicidades e complexidades na configuração coreográfica situam uma pesquisa de movimento que ora perambula no quintal daquilo que já sabe ora salta a cerca desse quintal denotando algo novo e singular.

Entre memes conhecidos e replicados, alguns já transformados e outros inéditos, conforme os processos evolutivos naturais-culturais de expansão/transformação da dança, as coreografias que integraram o Cesta de Dança – 2012, cada uma a seu modo, instigam diferentes gostos, afinidades, identificações, opiniões, comentários e modos de ver do público goiano. Este, cada vez mais bem servido com eventos, pesquisas e criações de dança de diferentes procedências, configurações e estilos.


Odailso Berté
Coreógrafo, dançarino e pesquisador em dança contemporânea
Doutorando em Arte e Cultura Visual - UFG
Mestre em Dança - UFBA
Licenciado em Filosofia - UPF
Imagens de Odailso Berté e Larissa Mundim

Quando a dança 'Por Acaso' gera (des)construções

Pensando sobre crítica de dança, apreciação artística, análise estética... Ser mais romântico ou mais rigoroso? Ser marxista, positivista, semioticista, subjetivista? Ser popular ou erudito? Vulgar ou enrustido? Descrever uma experiência de construção de sentidos/significados? Narrar uma particular relação com a obra/evento/dança? Dizer ‘gostei’ ou ‘não gostei’? Apontar ‘que bom’, ‘que tal’, ‘que pena’? Determinar o que eu ‘acho’ que o autor quis dizer? Direcionar o olhar dos outros com o meu ‘achado’? Os caminhos se cruzam, as possibilidades se misturam, as vontades se abraçam.

Skatistas, patinadores, uma galera do ‘cachimbo da paz’, casais apaixonados, homens que usavam o WC feminino, música sendo ensaiada, nuvens prometendo chuva, uma bela de rosa e preto que performava poses sensuais... Entre tudo isso e tantas outras formas de vida, ação, movimento, que compunham o cenário da Praça Universitária de Goiânia/GO, no dia 24 nov. 2012, aconteceu o “Por Acaso – Tardes de Improviso”, sob coordenação do Por Quá Grupo Experimental de Dança, dirigido por Luciana Ribeiro.

Como o próprio grupo descreve, Por Acaso – Tardes de Improviso é uma jam session que busca reunir artistas para improvisar músicas e danças quentíssimas. Costumeiramente, acontece na Fábrica Cultura Coletiva, todavia, por ocasião da Mostra de Arte Insensata (22 a 24 nov. 2012), a sessão de improviso deslocou-se da Fábrica para a Praça. Dialogando com a cidade e com artistas, o Por Acaso objetiva criar encontros, intervenções e experiências sonoras, físicas, plásticas e visuais.

Esses entrelaçamentos de sensações/sentidos/experiências – que não prescindem do pensamento, pois tudo está junto no corpo – possibilitam modos de apreciação da dança que se articulam entre o assistir e o dançar junto. Ver e fazer seduzem um ao outro e se (con)fundem, abrindo possiblidades de apreciação, envolvimento, diversão, criação, diálogos sensíveis e estéticos. Os corpos, literalmente, caem na dança. Do mais ao menos iniciado, todos dançam, esgarçando as fronteiras da dança enquanto arte, área de conhecimento, profissão, entretenimento, evento social, ação-pensamento do corpo. Quer arte mais (in)sensata que isso?

Por Acaso possibilita pensar-sentir-fazer questões em torno da acessibilidade a artefatos e obras artístico-culturais; a democratização da experiência estética; a desfronteirização palco/platéia; criações coletivas; relações corpo e ambiente; contemplação e participação; crítica e apreciação; etc. Múltiplos vieses de interpretação emergem quando a dança aponta para além de si própria, abrindo canais para, por meio do corpo, ver o mundo.

Suor, ideias e sentimentos emergem do corpo ao ver os demais corpos imersos na dança e ao deixar-se envolver, dançando junto. E o crítico, é o que fica diante de? É o que se relaciona com? É o que discursa sobre? É aquele que fala o que ele próprio faria se fosse o artista?  Lembrando o filósofo Jacque Derrida, talvez a ação do crítico possa ser entendida como uma (des)construção. Crítico é o (m)eu corpo que, tocado pelo que vê, imerso no que experimenta, configura uma fala acerca disso. Esta fala pode não ser mais o visto e experimentado e sim uma desconstrução, uma outra construção, um dos possíveis modos de ver, dizer, interpretar aquilo.

Odailso Berté
Coreógrafo, dançarino e pesquisador em dança contemporânea
Doutorando em Arte e Cultura Visual - UFG
Mestre em Dança - UFBA
Licenciado em Filosofia - UPF
Fotos de Odailso Berté

15 de novembro de 2012

Corpografias de Nega Lilu

Romeu e Julieta, A Bela e a Fera, Alexandre e Heféstion, Frida e Diego, Lampião e Maria Bonita... Nega e Lilu. Reais e fictícias, épicas e populares, estas e outras histórias compõem nosso imaginário e traduzem diferentes formas de amar. Misturando sutilezas e intensidades afetivas, o espetáculo “Nega Lilu” impacta, comove e questiona acerca da busca da plenitude do amor, em apresentação realizada no dia 11 de novembro de 2012, no Teatro Goiânia.

Flora Maria e Valeska Gonçalves (foto de Lu Barcelos)
 
Com ousadia e sensibilidade, a coreógrafa e bailarina Valeska Gonçalves da Nega Lilu Cia de Dança faz uma transposição do verbal ao gestual sem produzir caricaturas ou personagens estereotipados. Em vez de narrar linearmente o romance, a coreografia descarta obviedades captando e traduzindo sensações e estados das protagonistas. Estes sentimentos passeiam pelos corpos das bailarinas seduzindo e engajando o público a descobrir, encontrar, construir quem é Nega e quem é Lilu. As surpresas, emoções, tensões e reflexões geradas pelo espetáculo, criam uma atmosfera de diálogo entre arte e vivências, possibilitando que o espectador entrelace a dança com suas próprias experiências afetivas.

 Os auges e tropeços, tão característicos nas relações amorosas, ganham visceralidade com a instigante interpretação das bailarinas Valeska Gonçalves e Flora Maria. Gestos detalhados e delicados acentuam a profundidade de pormenores que estabelecem a reciprocidade entre duas pessoas. A sonoridade de um sapateado flamenco entrecortado exacerba a lástima e, ao mesmo tempo, a fortaleza de uma mulher lidando com a ausência.
 
Valeska Gonçalves (foto de Lu Barcelos)

 A movimentação de um corpo em contato com uma banqueta sugere nuances de uma sensualidade feminina que se enuncia entre desejos e distância, escorregando dos fios de cabelo ao salto do sapato. São genialidades coreográficas que possibilitam ver a dança não apenas como algo sentimentalista, mas como uma inteligência do corpo que não separa sentir e pensar.
 
Flora Maria (foto de Lu Barcelos)

O espetáculo de dança “Nega Lilu” constrói corpografias a partir de um conto contemporâneo de Amor, mediado por contatos físicos e virtuais, presenças e ausências. “Sem Palavras”, escrito por Larissa Mundim, também vem sendo comentado, transformado e difundido pelas linguagens da literatura, audiovisual, body art, street art e performance.

Na dança e no conto, os corpos escrevem uma história que vale cada instante e inscrevem no corpo do espectador a sensação de que o amor é eterno no tempo em que ele acontece. Estas escritas do/no corpo, ao passo que nos deixam sem palavras, também possibilitam a enunciação de mais de 100 palavras sobre amor, permanência, efemeridade, amadurecimento... Que tão bem descrevem os ciclos de vida de cada pessoa.


Odailso Berté
Coreógrafo e pesquisador em dança contemporânea
Doutorando em Arte e Cultura Visual - UFG
Mestre em Dança - UFBA
Especialista em Dança - FAP
Licenciado em Filosofia - UPF

4 de novembro de 2012

Entre Pina Bausch e Madonna, uma dança contemPOPrânea

Você já ouviu expressões do tipo: A dança... “Vem lá de dentro”... “É um dom divino”... “Brota da alma”... “É a expressão do sentimento”... Ou... “É coisa do capeta”? Ingênuas ou equivocadas, estas são formas como alguns veem e entendem a dança. Lembra do filme “Footloose” de 1984? Ele narra um fato curioso, a proibição da dança numa cidade. O reverendo de uma igreja cristã busca impedir o movimento, a liberdade, a expressão do corpo, do “pé solto – footloose”, como diz o título. Essa história é antiga e real. Dança e corpo foram, por muito tempo e ainda hoje, associados à sensualidade, ao sexo, ao pecado, ao demônio. A alma, o espírito, a mente, o pensamento, a teoria, foram erroneamente entendidos como superiores e separados do corpo, do afeto, do prazer, dos sentimentos, da prática.

Kevin Bacon em "Footloose" (1984)

Em “Footloose”, a rebeldia de Ren McCormick (Kevin Bacon) mostra-se no seu corpo: em seus modos de se mover, dançar, falar, se comunicar com os corpos submetidos ao conservadorismo e de enfrentar os corpos conservadores. Quando um pintor faz sua obra, o quadro que ele cria é um objeto externo ao seu corpo. Já um dançarino, quando faz sua obra, a dança, esta não está separada do seu corpo, ela é o seu corpo. Nesse sentido, podemos entender que o corpo é o lugar e o sujeito da dança, ou ainda, que dança é corpo.

Na dança contemporânea nem sempre o coreógrafo cria e os dançarinos repetem. Os modos de configurar a coreografia podem ser compartilhados e misturados com várias outras formas e técnicas artísticas. Ações como andar, correr, sorrir, falar, etc., podem ser vistas no palco, criando um estilo de dança que, muitas vezes, borra as fronteiras entre a arte e a vida cotidiana. Entre os tantos artistas, nacionais e internacionais, destaco o diferenciado trabalho da coreógrafa alemã Pina Bausch (1940-2009), recentemente homenageada pelo cineasta Wim Wenders com o filme “Pina” (2011) e que já tinha aparecido em “Fale com Ela” (2002) de Pedro Almodóvar e “E La Nave Va” (1983) de Federico Fellini. O modo de Pina coreografar era surpreendente. Ela fazia perguntas aos seus dançarinos e eles deveriam respondê-las com movimentos, palavras, gestos relacionados às suas experiências vividas. Com as criações de seus dançarinos Pina organizava as coreografias e espetáculos.

Espetáculo "Bamboo Blues" (2007) de Pina Bausch. Foto de Jong-Duk Woo.

Com esses modos de pensar-fazer dança tem sido possível compreender que o corpo não é uma máquina, a prisão da alma, o lugar do pecado ou somente um repetidor de passos. Mas sim, que o corpo pensa e pode organizar e executar a dança a partir das suas experiências. Pensar é uma ação do corpo. Próximo do que diz a crítica de dança Helena Katz, a dança pode ser compreendida como pensamento do corpo. Ou seja, quando o corpo dança, está pensando/sentindo/comunicando ao mesmo tempo.

Dança é arte e uma área de conhecimento/criação/pesquisa, um curso presente em várias universidades do Brasil e do mundo. Mas sem se restringir a isso, a dança está também em festas, boates, videoclipes, shows, filmes. Entendida como arte ou como entretenimento, dentro dos padrões estéticos tradicionais ou dos padrões da cultura de massa, trata-se de dança e de corpos que dançam. Não vejo maior ou menor valor na dança de um espetáculo de Pina Bausch ou na dança de um show de Madonna... Entre um corpo que assiste uma coreografia de Pina e outro corpo que sua dançando na boate ao som de Madonna.

Coreografia de "Girl Gone Wild" - MDNA Tour (2012). Foto de Rêmulo Brandão.

Demonizar Madonna como cantora de música pop – cultura de massa destinada aos prazeres do corpo e sacralizar Pina Bausch como coreógrafa de dança contemporânea – arte destinada à contemplação mental/espiritual, são atitudes equivocadas, mas muito difundidas. Madonna e Pina Bausch tiveram contato direto com a técnica de dança moderna da coreógrafa norte-americana Martha Graham (1894-1991) em NY. Nos diferentes trabalhos das artistas percebe-se o destaque do corpo, da dança e de um conjunto cênico produzido cuidadosamente. Os chamados ‘erudito’ e ‘popular’ se misturam de muitas maneiras no cotidiano das pessoas, nos mais diferentes modos como nós curtimos, consumimos, usamos, aprendemos, reinventamos ou repudiamos danças, imagens, produtos, roupas, músicas, etc.

As proibições, demonizações, sacralizações e separações já não dão conta dessa profusão contempoprânea. A neurociência tem mostrado que razão e emoção são funções do corpo e que elas operam juntas, sempre. Compreendendo que somos corpos ‘sentipensantes’, busco ver-pensar-fazer uma dança contempoprânea: que é “footloose”, dos pés soltos, do corpo livre, indomável, criativo... Que borra fronteiras, separações, preconceitos... Que está misturada com a vida cotidiana, com os afetos, experiências, prazeres, desejos, sentimentos e pensamentos dos corpos.

Odailso Berté
Coreógrafo e pesquisador em Dança Contemporânea
Doutorando em Arte e Cultura Visual - UFG
Mestre em Dança - UFBA
Especialista em Dança - FAP
Licenciado em Filosofia - UPF

Imagens captutadas aqui, aqui e aqui. 

28 de outubro de 2012

Sex and the City: minutos de sabedoria

Abertura da série

Um docinho de abóbora após uma taça de vinho, um prato de massa e um episódio de Sex and the City... E tudo parece mais claro, mais leve, acerca das nossas relações. Quando me dou conta, aqui estou (cheio de tesão), digitando login e senha para desatar mais uma postagem no blog. Por mais que muitos dizem tratar-se de consumismo, futilidades, relações vazias... Ok, ok... Podemos ir além disso? Posso deleitar-me com minhas e outras interpretações?

Refletimos sobre ações educativas, os problemas do mundo, a economia, a fome, a violência, a arte... E pouco sobre aquilo que consome e nutre tanto em nós: nossas relações afetivo-sexuais. Sem dó, parcimônia, vergonha ou piedade, Sex and the City toca, afaga, agita e escancara (masturba) esse assunto que diz respeito a mim, a você e a qualquer mortal transeunte no planeta Terra. Do povo dos demais planetas não sei bem, mas suspeito que seja parecido.

As pessoas entram em nossas vidas, acrescentam muito, levam muito, estragam muito. E nós, seguramente, também fazemos isso na vida delas. Cada um de nós tem um "Big" em sua vida. Não é só Carrie que padece dessa dádiva. Uma grande transa, um grande membro, um grande amor, uma grande paixão, uma grande perda, uma grande burrada... Falando em 'big', é (co)movente ver Samantha (em meio ao drama de seu namorado que, "hard", mede 8cm) espiando os jogadores do Yankees (seus belos tacos e bolas) no vestiário. Nós somos assim, grandes ou pequenas, tais situações sempre mexem com a gente.

Kim Cattrall como Samantha Jones

Recordo, cheio de fé (e com louvores), do que disse minha amiga - Top - Lourdes: "Sex and the City é como minutos de sabedoria". Amém! Respondo convicto. Sempre é possível nos ver nas personagens. Seus dramas são os de todos nós reles mortais. As soluções que inventam para seus problemas podem servir, perfeitamente, como modelos e (ins)pirações para nossas tragédias gregas, baianas, goianas, gaúchas ou javanesas, tanto faz.

Vale a pena nos perguntar sobre nossa porção Carrie... Samantha... Chalotte... Miranda... Personagens que congregam biotipos e maneirismos de tantas mulheres e homens. Sabe aquelas frugalidades afetivo-sexuais que, por vezes, você finje não dar a mínima mas que te corroem? Ou então, aqueles sentimentos e pensamentos que te fazem suar, perder o apetite, ficar excitado/a...? É disso que elas falam.

Junto disso tudo, que não é pouca coisa e nem futilidade, as meninas também escancaram o poder de uma palavra/situação/relação tão cara a nós (e às vezes bestializada): amizade. Ser amigo/a é tão profundo quanto ser namorado/a. Exige convivência, proximidade, experiência, confiança, reciprocidade... A lista segue. Acho patético quando certas pessoas dizem "entre nós, só amizade", como se ser amigo fosse um consolo para uma transa que não rolou ou um namoro que acabou. Desesperada por ter reencontrado o ex, Carrie liga marcando um encontro. Surpreendentemente, no local e horário marcados, quem lhe espera à mesa é Miranda. Diante de batatas fritas já frias, chuva e um olhar terno que acolhe, a regra mais importante da separação: nada se supera sem amigos.

Sarah Jessica Parker e Cynthia Nixon como Carrie e Miranda

Sex and the City trata dessas relações tão humanas que nós experimentamos a cada dia na cidade, na rua, em casa... Em outras palavras, a série me sujere muito acerca das relações corpo - ambiente (como discutem Greiner e Katz, 2001), insinuando sem pretextos que somos e não temos corpo. Que as relações que vivenciamos não são obras de espíritos zombeteiros (salve Chaves), mas de corpos sexuados e situados. Vale a pena ver, sentir e se questionar. Carrie sabe o que é sexo bom e não tem receios de (se) questionar a respeito. E você?


Imagens capturadas da abertura e do 1º episódio da 2ª temporada da série.

22 de outubro de 2012

Sobre filosofia e dança contemPOPrâneas

Por volta de 1997/98, quando as Spice Girls se tornavam conhecidas no mundo, Madonna lançava o disco “Ray of Ligth” e o impactante videoclipe de “Frozen” (entre vários outros fatos também relevantes), eu iniciava a faculdade de filosofia. Entre os comentários que se pretendiam revolucionários no intuito de “derrubar cercas” e combater a ideologia dominante, diziam que a música pop era uma das armas dos poderosos capitalistas sempre prontos a nos dominar.

Madonna no music video "Frozen" (1998)

Isso hoje me soa tão épico e mexicano, do tipo: “Own, e agora quem poderá nos defender?” Como se uma entidade vermelha – tão ideológica quanto a combatida – fosse baixar, instaurar um novo mundo e derrotar o inimigo dominador. So sweet... Como num filme onde a bonanza paira após a dura tempestade. As Spice Girls se foram, vieram os Backstreet Boys e seus derivados (que também já se foram), Madonna - apesar do marxismo - está aí firme e forte (talentosa e ousada) há 30 anos, Michael Jackson já partiu... E há quantos a “arma pop” matou? Até onde sei, ninguém morreu alienado por ouvir/dançar “Wannabe”, “Thriller” e mais recentemente “Girl Gone Wild” .

Entendo a crítica do marxismo num tempo onde ditadores como Hitler criavam signos, gestos, símbolos, imagens, com os quais as massas poderiam se identificar no sentido de aderir e seguir cegamente a um líder no qual se sentissem amparadas e representadas. Nesse sentido a cultura de massa também poderia ser (e por vezes o é) uma estratégia de manipulação a serviço de articulações capitalistas de mercado/consumo.

Seria instigante pensar (para além das estatísticas e ibopes do quê e quanto é vendido) acerca dos modos como são usados tais produtos, as reinvenções, as distorções, as histórias que são inventadas a partir deles nos mais diferentes cotidianos. Mesmo as danças de videoclipes, da TV, das massas (que muitos alunos/crianças/jovens adoram aprender e repetir), tão combatidas por certos educadores e profissionais da dança... Como elas podem envolver o afeto, o prazer, o desejo dos alunos? Como, ao invés de demonizá-las, ver nelas possibilidades de aproximação, identificação, crítica e criação?

Penso que se, por vezes, a dança contemporânea fosse menos ‘cabeção’ e mais contemPOPrânea, mais fecunda poderia ser. Para os guardiões da dança que acham que a sagrada arte e os profanos produtos da indústria cultural não se misturam, vale lembrar, por exemplo, que  Madonna foi aluna de Martha Graham – uma das renomadas coreógrafas que apontou novos rumos para a dança no mundo, justamente por pensar-fazer dança a partir de sentimentos, emoções e elementos da realidade vivida. Isso não significa que estou receitando repetir os passos/coreografias de Madonna, Martha e outros. Mas sim, entender como esses e tantos outros passos já estão misturados com os nossos, envolvendo nossos desejos, afetos e experiências, e, portanto, que histórias/movimentos podemos criar com e a partir deles.

Madonna em homenagem a Martha Graham
(Harper's Bazaar - EUA, 1994)

Penso que, mesmo diante da hostilidade marxista, eu poderia ter expressado sem receios minha preferência pelas Spice Girls e por Madonna. Tanto no sentido de que faziam e fazem parte de minha identidade/identificação quanto nos modos como tais artefatos/imagens/produtos/artistas podem interpelar o ser livresco, elucubrativo, abstrato e antiafeto/corpo de algumas formas de se fazer filosofia e dança. Penso sim, sem nenhum receio, que se a dança e a filosofia (a primeira enquanto arte e ambas enquanto áreas de produção de conhecimento) fossem mais POP (popularizadas), poderiam contribuir de forma mais e(a)fetiva para os corpos se (mo)verem de modos mais emancipatórios.

Isso, no sentido de que, reconhecendo as experiências vividas, dança e filosofia poderiam instigar possibilidades para os corpos perceberem o como investem seus afetos e razões nos usos que fazem de textos, músicas, roupas, danças, imagens... Sejam eruditos, populares, de massa... Pouco importa a classificação, pois todos são formas/produtos culturais com os quais nos misturamos cotidianamente, queiramos ou não.

Talvez assim o “conhece-te a ti mesmo”, de Sócrates, e tantas outras máximas filosóficas, fizessem mais sentido. Talvez assim, o materialismo histórico-dialético, mais próximo das contradições, paixões e lutas 'históricotidianas' que movem e são movidas pelos corpos, nos possibilitaria criar tantos e outros sentidos/razões.

Odailso Berté
Coreógrafo e pesquisador em dança contemporânea
Doutorando em Arte e Cultura Visual - UFG
Mestre em Dança - UFBA
Especialista em Dança - FAP
Licenciado em Filosofia - UPF

Imagens capturadas aqui e aqui. 

10 de outubro de 2012

Quasar Cia. de Dança: sentidos que entram no singular e saem no plural


A virtualidade, por vezes entendida como irreal, exacerba sua concretude existencial – corpórea – real na dança da Cia. Quasar. Com o espetáculo “No Singular” (2012), estreado em 07 de outubro, no Teatro Rio Vermelho, Goiânia/GO, a Cia. possibilita um olhar táctil e afetuoso para as relações mediadas pela tecnologia e pela interatividade. Corpos ágeis e frágeis são os sujeitos que, entre o excesso de imagens e informações, constroem suas identidades e identificações.

Henrique Rodovalho e os/as dançarinos/as da Quasar configuram no palco modos de dançar que sugerem a composição de um chat colorido e multifacetado. Um bate-papo tecido por textos entrecortados, por gestos curtos ou prolongados, por exposições e ocultamentos, por desejos, fetiches e imagens que, em rede, vão construindo, fragmentando, distorcendo e/ou (re)inventando novas formas de realidade.

Ao abordar a fluidez, a simultaneidade e a rapidez com que informações e imagens atravessam os corpos na contemporaneidade, o espetáculo possibilita pensarmos isso não só como uma questão sociológica/conjuntural. Mas, que o social e a conjuntura são estruturados pelas subjetividades e afetividades diversas, singulares, que, em seu contexto cultural, dão as cores, os tons, as marcas para a pluralidade.

De modo singular, a Cia. Quasar enuncia/denuncia/pronuncia que o corpo é contaminado e contaminador, próximo do que dizem Katz e Greiner (2001) ao refletirem sobre as relações corpo e ambiente. Um coro de vozes e movimentos é entretecido com gírias e códigos que usamos em conversas pela internet ou pelo telefone. São expressões e gestos que se proliferam e contaminam os mais diferentes sujeitos e espaços, criando como que acontecimentos em rede. Estas contaminações podem interligar ambientes e corpos, propagar mensagens e imagens, (des)construir identidades, mobilizar modos de ser, de se mover, de ver e ser visto, conforme pensa e propõe Tourinho (2011) ao discorrer sobre cultura visual e produção de subjetividades na relação com imagens.

Os risos que brotam no público podem ser vistos como identificações, como modos do espectador se ver na dança. Ao percebermos em cena as expressões que usamos cotidianamente, é como se não houvesse barreira entre palco e plateia, pois a dança toca nas relações que vivenciamos, dando margem à compreensão de que todos, artistas e público, somos corpos gestores de movimentos, relações, encontros, trocas...

Na perspectiva de aproximação com o público, a Cia. divulgou na internet, tempos antes da estreia de “No Singular”, um vídeo onde o coreógrafo convida pessoas a dançar com a Quasar e ensina, passo a passo, a sequência a ser dançada. Esta proposição aguça a curiosidade durante todo o espetáculo, no sentido de estar atento para perceber onde/como se dará a interação. Esta, anunciada como “o momento que todos esperavam”, vem a acontecer ao final do espetáculo, quando quem aprendeu a coreografia é chamado a subir ao palco e dançar juntos dos dançarinos. Esta instigante proposta deixa uma expectativa em aberto, possibilidades de maior enredamento com o todo do espetáculo, como o impressionante momento em que pessoas do público (organizadas previamente) atravessam o palco entremeando-se com os dançarinos, interpelando o olhar, suscitando perguntas, ampliando a criação de sentidos.

Durante todo o espetáculo há a sutil presença de um personagem que, ao fundo, sem interagir diretamente com os dançarinos, realiza colagens para um cenário montado em cena. Os recortes que vão sendo dispostos, por vezes, parecem pixels de uma grande figura em devir, um mosaico de fotografias, uma bricolagem de imagens, pedaços de espelho, recortes de histórias. Percorrendo os labirintos da fragmentação, da multiplicidade e da singularidade, também chama a atenção, a versatilidade e as nuances do figurino (clean, retro, bufante), assinado por Cássio Brasil. São peças, elementos que convocam a pensar/imaginar possíveis imbricações entre singular/plural, indivíduo/sociedade, especificidade/diversidade, permanência/mudança.

Quasar lembra aroma, perfume... Um corpo estelar que emite luz e ondas radioativas... Quasar lembra movimento. Quasar, a Cia. que, do centro-oeste do Brasil, irradia dança para o mundo e em seu mais novo trabalho aguça os sentidos possibilitando pensar que o virtual é real, cria realidades, relações, (re/des)encontros. Entramos no teatro no singular e saímos no plural por meio das visualidades e movimentos ‘contempoprâneos’ – presentes em nossos cotidianos – que a Quasar consegue organizar e nos devolver em forma de dança.

Odailso Berté
Coreógrafo, dançarino, professor, pesquisador em dança contemporânea
Doutorando em Arte e Cultura Visual - UFG
Mestre em Dança - UFBA
Especialista em Dança - FAP
Licenciado em Filosofia - UPF

Imagem: Foto com a dançarina Valeska Gonçalves
Capturada no facebook da Quasar Cia de Dança

Textos citados:
GREINER, C; KATZ, H. Corpo e processos de comunicação. In Revista Fronteiras: estudos midiáticos. São Leopoldo: UNISINOS, Vol. 3, n. 2, p. 65-75, dez. 2001.
TOURINHO, I. As experiências do ver e ser visto na contemporaneidade: por que a escola deve lidar com isso? In: MENDONÇA, R. (Coord.). TV Escola / Salto para o futuro: Cultura Visual e Escola. Ano XXI, Boletim 09, ago. 2011, pág. 09-14. Disponível em: http://tvbrasil.org.br/fotos/salto/series/14380009-CulturaVisual.pdf.

1 de outubro de 2012

VI Seminário... o/a DaNçA Vianna segue movendo e aproximando corpos

Só uma visita, um encontro, um olhar, não podem definir um lugar, uma pessoa, um grupo... Não que definir seja algo primordial... Mas a visita, o encontro, o olhar, o estar com, podem dar a conhecer traços, gestos e afetos que tocam, marcam e se prolongam pelo corpo, pedindo retornos, reencontros, continuidades. Assim começo a relatar alguns afetos emergidos durante o VI Seminário de Dança da Faculdade Angel Vianna - RJ, realizado entre os dias 27 e 29 de setembro de 2012, organizado por Helia Borges e Marina Magalhães.

Como agora ao recordar para escrever, destaco, ao início do evento, minha hesitação e euforia em conhecer a sábia dançarina de quem ouço falar desde que, aos 10 anos de idade comecei a dançar... Angel, a companheira de Klauss, a mãe de Rainer... A matriarca da família Vianna - o trio que deu traços particulares para a dança no Brasil. Uma família que ampliou seus laços para além de muitas fronteiras... É possível ver e sentir o/a DaNçA Vianna (se) movendo (em) tantos corpos pelo mundo.

Angel Vianna

A sede da Escola e Faculdade Angel Vianna beija-nos o olhar já na chegada, como uma casa, um lar, um aconchegante ambiente onde pessoas/corpos se encontram, aprendem, ensinam, dançam... Em meio a rostos, sorrisos e corpos tão receptivos ao encontro, lá estava ela, pequena e tão grande ao mesmo tempo, sorridente, segura, acolhedora, dançante em cada mínimo movimento, rodeada de amigos/as e admiradores/as. Hesitante, contemplei sua imagem alada envolta em tecidos vermelhos (que adorna a entrada da Escola) e aguardei por um momento que me permitisse abraçar e ouvir uma pequena palavra daquela a quem o nome me evoca uma imagem que indica seu modo de ser: ANGEL!

O Seminário, já em sua sexta edição, estruturou-se como um instigante entrecruzamento de pesquisas em dança, escritas e dançadas. Todas teórico-práticas ao mesmo tempo, se entendermos que os procedimentos sensório-motor e conceitual-abstrato do corpo nunca agem separadamente, conforme propõem Lakoff e Johnson no desafiador livro “Philosophy in the flesh” (1999). Entre interpeladoras proposições, pesquisadores/as e artistas relataram acerca de suas compreensões, modos de ver/pensar/fazer dança. Aproximações e diferenças demonstraram que a construção da dança, enquanto área de conhecimento, no Brasil, vive momentos de intensa busca e abertura de caminhos.

Letícia Nabuco, "A sua violência, A minha violência"

Entre as tantas interpelações e perguntas que as reflexões do VI Seminário trouxeram, destaco: A arte/dança somente deve servir ao gosto? Em que medida a arte/dança produz conhecimento? Que modos de conhecimento cabe à arte/dança construir? Que contribuições a relação arte e ciência vem agregando à dança? Como o próprio VI Seminário de Dança da Faculdade Angel Vianna, entre tantos outros eventos de pesquisa em dança, e os cursos de Graduação e Pós-Graduação em Dança espalhados pelo Brasil vem contribuindo para construção do conhecimento em/sobre/de dança? Como podemos considerar as pesquisas de cada participante do VI Seminário como diferentes formas de conhecimento em dança?

O corpo, que é teórico e prático ao mesmo tempo, constrói conhecimento por meio de suas ideias, sentimentos, emoções, razões, afetos, que agem sempre indissociadamente. Assim vi, experimentei e compreendi a mistura de corpos que permeou o VI Seminário. Corpos que, entre discursos mais apaixonados ou mais contidos, sentados em cadeiras ou no chão, mais ou menos móveis, falantes ou ouvintes, questionados e questionadores, demonstraram o esforço de ações concretas que vem construindo modos diversos de conhecimento em dança em suas relações com arte, educação, filosofia, clínica, política, em diferentes lugares do Brasil.


Associando-me ao que, sabia e delicadamente, disse Marina Magalhães durante a penúltima mesa do VI Seminário, Angel Vianna tem talento para congregar, aproximar, pessoas, danças, conhecimentos... O evento, Angel, cada pessoa/corpo participante, em seus diferentes modos de ver/pensar/dançar, deixaram marcas e vontades de voltar, lá estar, construir, conhecer, dançar... É como se a/o DaNçA Vianna seguisse com cada um de nós participantes, movendo nossos afetos, ideias, vidas... Fertilizando nossos pensamentos e sentimentos, fazendo do (m)eu corpo um gerador/propositor de dança enquanto um modo particular de se mover, se comunicar, se relacionar e intervir no mundo.

Odailso Berté
Coreógrafo, dançarino, professor e pesquisador em dança contemporânea
Doutorando em Arte e Cultura Visual - UFG
Mestre em Dança - UFBA
Especialista em Dança - FAP
Licenciado em Filosofia - UPF

Foto com Angel Vianna capurada aqui.
Demais fotos de Odailso Berté.

22 de setembro de 2012

"Rubro": quando a dança enrubesce nossos sentidos


Aquilo que vemos/percebemos por meio da estesia – nossa capacidade de sentir e criar sentidos/significados – nos interpela, enquanto corpos, a criar discursos, imagens, interpretações. Cada corpo vê, percebe e interpreta a partir do seu repertório de ideias e experiências. Por vezes, os modos de cada um interpretar se encontram, outras vezes se distanciam, o que é bom e até desejável. Quando um corpo cria algo, nesse caso, uma dança e a mostra, certamente tem um intento/pergunta/motivo que o leva à criação. Todavia, a compreensão de que o público deve ‘adivinhar’ o que o artista quis ‘realmente’ dizer com sua obra é algo questionável.

Ver/pensar/fazer arte na contemporaneidade pode estar próximo da ideia de relação e diálogos entre artista e público. Diálogos onde a proposição artística se mostra aberta à interpretação. Desse modo percebi a coreografia “Rubro” (2012), do Núcleo de Dança Coletivo 22, em parceria com o Curso de Licenciatura em Dança da Universidade Federal de Goiás, apresentada nos dias 18 e 19 de setembro de 2012, no Centro Cultural da UFG, em Goiânia. Acerca desta, busco tecer em palavras alguns sentidos como forma de crítica e apreciação.

Gotas, pingos, líquido... Uma dança que escorre sem tropeços, sotaques ou obstáculos à percepção. Como propõe António Damásio (2010), pensamos por meio de imagens vistas, recordadas, criadas. Nossas ideias são imagens. Nesse sentido, vejo “Rubro” como uma coreografia que não passa pelo olhar sem umedecer o corpo de imagens/ideias. Entrecruzando elementos da natureza, do ciclo corporal feminino e da mitologia africana, a coreógrafa Renata Lima e o intérprete Sacha Witkowiski criam peculiares movimentos de dança. Estes, associados ao figurino, aos objetos cênicos, à música e à projeção de imagens, instauram uma coreografia que liga sangue e barro através de uma versatilidade plástica, sutil e envolvente.

Sangue e barro são aproximados pela cor avermelhada e pelos modos/imagens como podem ser referidos ao corpo, à vida, à morte, à fertilidade. É interpeladora a tentativa artística, tanto da coreógrafa como do intérprete, de moldar num corpo masculino elementos do ciclo corporal feminino. A exuberância das formas/movimentos corporais do dançarino sugere ver seios em seu peito, gravidez em seu abdome, menstruação em seu falo. São transmutações, imagens, gestos que a versatilidade contemporânea da dança constrói por meio de uma estética que seduz a compreensão e questiona a percepção.


Não me contenho à evocação de Elisa Lucinda, em seu poema ‘Aviso da Lua que Menstrua’, ao dizer que “há que se ter cautela com esta gente que menstrua”. Como faz a poetiza, também a coreografia parece sugerir: “Imagine uma cachoeira às avessas: cada ato que faz, o corpo confessa”. Bricolando ciclos e corpos femininos e masculinos, entrecruzando avessos dos gêneros, “Rubro” me parece sugerir a imagem de um homem que menstrua, que entre gaiola e saia (re)inventa prisão e vestimenta, que desfila exibindo membros e palavras, falos e falas, que acalenta atitudes (pa/ma)ternas sem titubear entre ser ele ou ela.

Os sangramentos que a coreografia sugere também denotam alusões a perdas, desencontros, ausências, saudades. “Cortei o dedo quando você se foi...” diz uma canção que compõe a trilha, possibilitando-nos pensar/imaginar acerca de que o corpo sofre, se machuca, sangra quando afastado daquilo ou daquele/a que lhe é importante, vital. Os cortes afetivos também sangram e tem seu tempo/espaço para a cicatrização.

Nesse diálogo entre quem assiste/percebe a dança e quem dança, não entendo imagem como representação. Como já dito, entendo imagem como ideia. Se quisermos usar o termo representação, talvez seja importante não entendermos que a dança transmite ou seja uma representação pronta. Mas sim, dança como uma forma de ação/pensamento do corpo (KATZ, 2005) que possibilita, a quem com ela se relaciona, a criação de representações, aqui entendidas como interpretações. Penso que “Rubro” articula com picardia e sensatez esse modo de ver/pensar/fazer dança.

Ao final, na saída do espaço cênico convencional, a coreografia rompe com este espaço. O corpo espectador, que pode se sentir fazendo parte desse espaço ampliado, tem a memória abraçada pela dança que parece querer ir embora com ele. O corpo dançarino, rubro de barro/sangue, como que evocando imagens de morte e vida, nos toca mais uma vez, beija-nos o olhar e enrubesce-nos os sentidos.

Odailso Berté
Coreógrafo, dançarino, educador e pesquisador
Doutorando em Arte e Cultura Visual – UFG
Mestre em Dança – UFBA
Especialista em Dança – FAP
Licenciado em Filosofia – UPF
Fotos de Odailso Berté 

17 de setembro de 2012

Sobre sol e vento, beijos e bichos


Por vezes parece tão patético escrever sobre o que se vive, se pensa, se sente, que dá vontade de mandar o mundo se lixar. O mundo, as normas acadêmicas, os textos, as avaliações, a constituição. Até a dança, que na sua roupagem contemporânea, por vezes parece queimar as lantejoulas para vestir-se da mais abstrata massa cinzenta.

Na vida a gente bate perna pra chegar nalgum lugar, bate a cabeça pra decidir o mais correto possível, bate cabelo pra extravasar, bate portas pra cuspir a raiva, bate em portas pra que ambientes se abram, e o coração, essa metáfora pra falar de sentimento, também bate bombeando necessidades corpo afora.

O vento batia sofrido nas paredes, fatigado pelo calor, movia as etiquetas de viagem ainda não removidas da mala sobre o roupeiro. Uma saudade doída dos que ficaram e daqueles que estão por vir. Um resumo do querer ir embora ficou embrulhado no bilhete sobre os livros. Nada novo sob o sol que escalda cada fiapo do sentimento.

Sinto que trisco na dança sem dançar, toco no amor sem amar, vejo e só solidifico as imagens que a retina capta. Elas é que servem aos meus desejos incontáveis. Poucos dos humanos, contemporâneos meus, entendem que uma oportunidade já seria o meu troféu, que um beijo seria meu gozo, que um chão sem linóleo já seria meu palco, que um olhar cumplice já me clarearia o caminho.

De recompensa, em mais esse dia de baixa pressão, o 'leãozinho' do Caetano, tão fofo, me disse "pára de se entristecer". Minha pele, minha luz, minha juba ficaram enrubecidas, tontas de ternura. Já o 'passarinho' do Alexandre Nero, chegou de mansinho e me mostrou que "não tem nada, porque nada deseja", mas que "a terra verde é sua, o céu azul é seu". Daí que vi que ele "tem muito, muito, muito mais que eu".

Levantei os olhos, revi o que tinha escrito, mudei parágrafos de lugar, troquei de música. As batidas continuam, o vento me coça as costas, a dança segue com a mão estendida conclamando-me para a pista. Falta-me um beijo pássaro, um afago leão, um dia a mais para deixar que a continência se perca na noite e prostitua minh'alma, essa invenção ingênua do (m)eu corpo que geme saudades, desejos e conflitos.

Foto de Odailso Berté.

4 de setembro de 2012

Eu, romântico? I'm so worth it


Minhas pieguices e erudições seguem se misturando no jeito de andar, escrever, pensar, sentir. Até de romântico foi chamado meu modo de escrever. Não entendi se foi elogio, piada ou ironia, mas era verdade, adoro um temperinho para letras e sentidos. Mas não é forçado, it's so natural, misturas de filosofias e danças.

Com textos tão focados em história visual, meu filme cotidiano ganha trilha sonora de Wanessa (a filha do Zezé Di Camargo). Nenhuma incompatibilidade gritante, valha-me Adorno! A não separação do visual dos demais sentidos, proposta pelo texto, reverberou para além das elucubrações e me fez cantar e dançar empolgadíssimo: "When you see what you lost, you won't wanna pay the cost, you'll curse it, I'm so worth it! Just shut up, let me say, don't throw it all way, we were perfect, I'm so worth it... I'm so worth it".

Sinceramente, só o texto não teria jogado tanto gliter na auto-estima. Indústria cultural? De massa? Que massa! Use com moderação e faça carão de "bunita" para os marxistas de plantão, faz um bem danado.

Falando nisso, entre os filmes que deixaram imagens escorrendo pelo corpo, lembro de Meryl Streep vivendo a dona de casa contida e sonhadora, tentando salvar seu casamento em "Um divã para dois" (2012). Ao final do primeiro exercício dado pelo terapeuta, o semblante  satisfeito da mulher que se sente vitoriosa ao acordar envolta nos braços do marido enternece todas as vontades de amar que habitam o espaço/corpo que somos. Como nunca, dormir/acordar de conchinha me pareceu tão gostoso e necessário.

Com lindas e coloridas referências dos anos 80, "Rock of Ages" (2012) reascende o sonho vivido em "Burlesque" (2010), e em vários outros filmes, da moça que sai do interior para buscar o sucesso na cidade grande. Mas quem não fica enrubecido com sonhos assim? Eu me derreto todo refazendo todas as coreografias do musical qual protagonista possuído em 3D pela arte. Da coreografia dentro de uma igreja, liderada por Catherine Zeta-Jones, às coreografias no pole dance, na Venus Club, sob o vozeirão de Mary J. Blige, transporia qualquer limite ou moral, só pelo prazer de dançar, de discursar impropérios e conceitos com corpo.

Pois é benzinho, posso ser romântico e áspero, casto e promíscuo, pop e erudito, dançarino e filósofo, streaper e conferencista, monge e carnavalesco... Na mesma toda, no mesmo gingado. A questão é: qual deles você paga pra ver? a qual deles te apetece evocar?

Imagem do trailer do filme "Rock of Ages".

2 de setembro de 2012

"Cozumel? Acho que não vai ter mel..."


A cada bala de mel que saboreio, ferrões e doçuras se cruzam no paladar a lubrificar uma garganta doída, meio seca. "Cozumel? Acho que não vai ter mel...", lastimou duvidoso o novato garçom. Entalados, desejos mudos arranham conversas engolidas num "cala a boca" decidido. "CON...ZU... MEL...". Não, querido, C, O, Z, U, M, E, L, sem "n", como meu nome.

"N" alternativas seriam possíveis, mas a que restou é dormir com o cachecol vermelho xadrez, aquecendo-me a garganta. Fazendo-me companhia entre os travesseiros a escrever histórias de cama.

Apesar das dúvidas que semearam em mim, e que as vezes um e outro personagem dissipa ou confirma, o risco de manha que a garganta arranha, em mim assanha essa rima previsível me exigindo barganha. Mesmo que o garçom erre o nome do drink e desconheça o cardápio, o bar ganha.

Gostaria de escrever sobre a viagem que não almejo fazer, sobre a novela que acabei de ver, sobre o texto que preciso ler, mas aquele cachecol não pára de tremular na beira da cama.

Não é ritual de espera, não é prece ou simpatia. É só um restinho tolo de vontade que se apoia num pedaço de pano vermelho xadrez. Artefato pequeno que deixa grande o descuido. Além de aquecer a garganta que mais nada pede, ele recorda um outro 'não' da série que tenho colecionado.

Seu 'não' se mistura ao mel do sol que escorre cerrado afora, meio dia em brasa; se junta ao nada que me prende aqui; pigmenta em vermelho lençóis e travesseiros; joga no xadrez o raquítico desejo que se fez nó na garganta.

O garçom há de entender, um dia, que Cozumel só parece doce no nome. Já eu, erotizo o castigo de Judas tecendo ternuras na nuca sem sal e limão. Nesses avessos, o charme de um cachecol em pleno verão me diz que ainda faz calor aqui dentro, mas só estou aqui passando uma chuva.

Foto de Odailso Berté.

26 de agosto de 2012

Indelével recado


Caro amigo mascarado de ladrão (ou vicer-versa), qual será seu próximo disfarce? De Papai Noel ou quem sabe de Madonna, pra me agradar? Tenho de concordar que suas estratégias são táticas de novela. Me pergunto qual dos grandes autores globais usariam tais genialidades que você retira de seus mundos paralelos. Comparadas a você, "A próxima vítima" e "Vale tudo" são piadas previsíveis e sem graça.

Pensou que a ficha demoraria muito para cair? Até onde você deseja que eu lhe dê corda? Vou segurar aqui, pois você já está na beira do abismo. Veja com seus próprios olhos e cuidado com a queda. Que ela lhe conserve pelo menos os olhos esbugalhados para que possa ver que continuarei em pé enquanto você definha.

O que você realmente deseja de mim? Apenas esses aparelhos estúpidos que podem ser adquiridos em qualquer esquina? Pois se contente com sua insignificância e insucessos, aquilo que sou jamais lhe pertencerá. Meu conteúdo e estrutura, meus modos de ver o mundo e dar sentido às coisas jamais serão seus. Nem nascendo de novo o conseguiria, pobre diabo. Um dia você acaba se afogando nesse inveja lamascenta qua transborda pelo seu olhar peçonhento fingindo ares de inocência.

Sei que viestes no tempo certo, na hora marcada. Sei também que uma exposição, um café e um terreno baldio podem lhe servir de alibis. Sempre preferi acreditar que as pessoas são boas e que não existem complôs. Mas querido, você é a prova viva, o complô corporificado, ontem e hoje. Agora, fique atento, eu também posso ser um garoto mau, a meu modo, claro, sua sujeira não me contamina.

A lei do universo é ciclica, portanto, sua parte chega em tempo, confie. Não saímos ilesos da maravilhosa aventura terrestre. Me desculpe, eu já tenho rido com seus infortúnios e estou certo de que meu riso se dará em coro, orquestra e sinfonia com o que há de vir. Não por maldade, eu juro, não sou como você. Apenas por prazer, para aliviar as tensões que você deixou. O que, tenho certeza, são bem menores que sua desgraça.

Entenda, o que você realmente necessita é impossível de ser roubado. E se cuide, seus malgrados podem estar lhe esperando bem ali, na próxima esquina.

Imagem capturada aqui.

25 de agosto de 2012

Tietagens, preces e negações

 
As gotas quentes foram tocando-lhe a cabeça, encharcando os cabelos fio a fio. Pensamentos humedecidos, lembranças como unguentos escorrendo pelo corpo, molhados anseios, baldes de agua fria nas vontades. Desejos de escrita e representação, comunicado qualquer.

Não quis mais arregaçar as mangas, os 'nãos' que lhe foram dados em tão pouco tempo apontam a necessidade de ajuntar pedaços. Vendo-se como peixe e seu próprio pescador, apesar do banho, do suor e das lágrimas, encontra-se fora d'água.

Concursos, projetos, amores, furtos, compras... 'Nãos' encadeados como coreografia, sem entorno, sem fuga, sem arrego. Diretos, sem rodeios, cortantes. Bem mais que Pedro em suas míseras três vezes, negado, credo em cruz, agnus dei. Engolindo caroço de caju podre. Chateado com a academia que só faz é o povo engordar ao invés de ficar bonito. E, ainda, roubado, por ladrão infeliz e mequetrefe.

Os risos desses dias são contados com marca páginas rosa adornado com flor verde e amarela. Ele conta as folhas dos enredos da diva brejeira de Jorge Amado, puta e santa, cabrita e pomba, diva das dunas de Mangue Seco. Ela é quem lhe cochicha possíveis voltas, desgraças que podem frutificar ganhos nem sequer esperados. Eta, seria uma luz de Tieta?

O que ainda cabe a um cabrito, com porte de bode, que destrincha a idade de Cristo sem mistérios gozosos? Só terços dolorosos, em quartos sozinho. Melhor seria o quinto dos infernos, por segundos de paz e fogo... Velas perpétuas acesas, mais magras que a necessidade que o ronda. E ele é só um misto de cabrito e pastor que almeja um campo de aveia verde para dançar. Esse, o céu dos seus sonhos.   

Voltar? Rever o percurso de antes? Ou apenas entender um aparente regresso como parte do trajeto a seguir? Afinal, a vida não é tão linear como pretendem os clássicos historiadores. Dessas humidades, talvez outra cidade, da saudade, quem sabe felicidade. Se faz sentido pensar de modo rizomático: Amém! Que assim o seja.

17 de agosto de 2012

Não cabendo no peito, transborda pelos olhos


Eu queria vir a pé, mas uma solidária carona não deixou que gastasse o solado do tênis adentrando a brisa pelas ruas da noite, claro, lembrando você... Quando o ego dá esse rumo para o pensamento, o id pronuncia seu olhar de reprovação e veta toda e qualquer verba de consolo. Nesse tema eles não concordam, daí me percebo falando sozinho, sendo meio dualista, daquele jeito que não gosto e tanto critico.

No cinema, "À beira do caminho" (2012) conseguiu (co)mover lágrimas, saudades, lembranças e perdas através da simplicidade de frases de parachoque e canções de Roberto Carlos. Eu que nunca pensei chorar ao som do Rei, vi meu orgulho derrotado e o id - isibido - se desmanchando numa larga escala de risadas de pura satisfação.

João, Duda e Rosa saltam da tela e fazem da sala escura um pedaço do cenário de minha vida: das vezes não feitas de um pai, de um filho carente e sonhador, dos amantes que tremem ao mínimo toque e sofrem pela distância, por perdões e voltas. Poeirentas estradas, boléia de caminhão, fotos, um único cd, um endereço não mais habitado, afago materno, elementos que enredam histórias para dizer que viver é como desenhar tendo apenas lápis, sem nenhuma borracha para apagar. E que quando a saudade não cabe mais no peito, é pelos olhos que ela transborda.

Não bastasse as delicadezas do filme que perfuraram as membranas e autodefesas do ego, o debochado id, sem dó nem piedade, ainda destaca uma das canções do enredo e canta que canta, dança que dança... Sambando na cara do indefeso ego. Insisto em não ouvir, mas quem disse que o ingrato se cala?

Como Petrolina (um dos cenários do filme) faz divisa com Juazeiro, a noite me trouxe o perfume do agreste de Tieta, do Mangue Seco baiano. Entre o sabor de pamonhas e tantas possibilidades de navegação, Tonha, Perpétua, Amorzinho, Carmosina e a Cabrita Master inflaram saudades do tempo em que meus olhos infantes não bebiam a ousadia das insinuações vividas pelas personagens inspiradas na obra do amado Jorge. Hoje sim entendo que os berros de Tieta, se fazendo de cabrita, eram a mais pura intensão de uma lua cheia de tesão.

Despedi a carona, tomei o rumo da cama e tentei deixar as memóras do dia à beira do caminho. No entando, o chato do id, possuído por uma entidade cabrito,  segue seu cantarolar agora quase em ladainha. Insatisfeito por não encontrar a versão do filme, de Nina Becker, ele tasca em meus ouvidos a canção na voz de Marjorie Estiano, e assim me embala para dormir:

... Esqueça, se ele não te ama, esqueça, se ele não te quer
Não chore mais, não sofra assim
Porque posso te dar amor sem fim
Ele não pensa em querer-te, te faz sofrer e até chorar
Não chore mais, vem pra mim, vem
Não sofra, não pense, não chore mais, meu bem ...

E assim dorme o ego, tendo o id ninando seus sonhos que vão lentamente se desvanecendo num percurso que mistura fatos, filmes, fotos e fins... Fazendo da cama a continuidade de um caminho cheio de eiras e beiras.

Imagem editada da original capturada aqui.

16 de agosto de 2012

Sobre diabos, confissões e tipos


Sim, sou do tipo que idolatra Madonna, chora com comédia romântica, às vezes tem vontade de morrer, adora assistir e cantar com as empreguetes, se decepciona com a Joelma dizendo que Jesus pode curar um gay, acredita em amor, assiste várias vezes "O diabo veste Prada" e "Miss Simpatia", sofre quando não é aceito, lê "Os diários de Carrie" e torce pelo "Sex and the city 3". Triste demais pra você? Problema seu. Ah, também sou filósofo, dançarino e quase doutor, se ajuda a manter seu ar de reprovação. Se isso fosse bate-papo, agora viria um KKK.

Existem diabos que vestem Prada, diabos que roubam Dell, diabos que ouvem Madonna, diabos que inibem afeto. Adoraria vê-los todos juntos, cada um dizendo a que veio, sem se esconder ou ter que arrombar portas. Adoraria dormir com o inimigo, isto é, se já não o tenho feito.

Sou do tipo que não faz a linha "Baby" (da Família Dinossauro): "Você tem que me amar!" Todavia, sentir saudade de algo que não tenho, às vezes incomoda bastante. E vejo, descaradamente, o quanto se tornam patéticos os que se acham "os desejados", ridicularizando os desejantes. Tão patético que dá canceira na paixão.

Não tenho ouro nem prata, incenso ou mirra. Não tenho paciência para tratar quem quer que seja como rei, messias ou senhor. Não tenho oferendas para conquistar afeto. Apenas constato que mesmo se fosse livre, se afogaria nesse poço do sentidos, afeto e prazeres que posso ser.

Quase como canta Madonna em "Evita": Eu não espero que meus romances deem certo ou durem muito, não me iludo mais que sonhos vão se realizar. Acostumado aos problemas, eu os antecipo, todavia, odeio isso. Você não odiaria? Nas intempéries da vida se aprende a remar, construir, esquecer, perder e obter ganhos que vem das margens.

Sou do tipo que vai e volta sem stresses para recomeçar, quando a paciência permite. Acostumado a perdas grandes e menores, como de mãe e de computador, digo que estou de volta. Podem tirar-me os anéis, que ainda terei dedos para coçar o saco e o pescoço. Podem levar os instrumentos, pois as ideias, as imagens, os gestos, o ímpeto criador de cada ação segue pulsando aqui dentro. Pode tentar inibir meu afeto, pois eu... Posso dar um jeito nisso também... "You'll see"!

Imagem capturada aqui.