1 de outubro de 2013

À revolução de Madonna e à pregação de m. feliciano, "show your ass"

Coincidentemente, nos dias em que assisti o filme “Secret Project Revolution” (2013), parceria da cantora Madonna com o fotógrafo Steven Klein, também me deparei com um vídeo de uma pregação onde o pastor e deputado m. feliciano ofende católicos e outra vez desmerece lésbicas e gays. Enquanto o pastor, nesta e em outras pregações, proclama que Deus matou artistas como John Lennon e Mamonas Assassinas, desdenha da confiabilidade da classe artística, condena negros, gays e mulheres e hostiliza católicos, a cantora pop se expressa em defesa de gays, negros, mulheres, artistas e em respeito a diferentes culturas e expressões religiosas.

Além das atrocidades proferidas por feliciano, “Secret Project Revolution” também me remeteu a fatos como a violência da Polícia Militar do Rio de Janeiro que, em 28/09/2013, agrediu violentamente professores/as que manifestavam exigindo melhorias em sua carreira, aos desmandos do STF em julgar e punir os ladrões engravatados do mensalão, à desvalorização dos educadores da rede municipal (que entraram em greve em 24/09/2013) por parte da prefeitura de Goiânia/GO e a tantos casos de agressão, desrespeito e intolerância nos quais facilmente seres humanos discriminam, ferem a dignidade e tiram a vida um do outro. Estas e outras situações estarrecedoras relacionadas ao referido filme me trazem a pergunta (que até parece clichê): Para onde estamos caminhando, queridos compatriotas humanos?
 
Criticada por ser rica, exibicionista, branca, mulher, ingênua, oportunista, etc., e propor reflexões e ações que podem levar a transformações no cenário de intolerância que se espalha pelo mundo, Madonna trás essas críticas para o filme, questionando o fato de, porque sendo ela mulher, loira, artista, não poderia ter atitudes revolucionárias. Em imagens extremamente bem criadas e articuladas e um uso cuidadoso da dança como metáfora, o filme, que prega uma revolução do amor, também é composto por uma narração na voz de Madonna. Ela expressa experiências e percepções vividas ao longo de sua turnê mundial em 2012, sua indignação, críticas que recebeu, sua vontade incessante e crescente de combater as injustiças e de unir mais pessoas nesse projeto que também visa (re)pensar o que é a liberdade de expressão.
No primeiro contato com o filme, o discurso/narração me pareceu tirar o foco das imagens ou querer explicá-las. Percebi mais a necessidade de Madonna falar do que, propriamente, a potência das imagens e da dança em questionar e instigar significados. Outras aproximações possibilitaram perceber afinidades, desencontros e fricções entre texto/fala e imagem/dança. O “Secret Project Revolution” está inserido num projeto maior chamado “Artforfreedom”, onde outros artistas são convocados a se manifestar acerca do que pensam sobre liberdade, preconceito, violência, etc.
 
Ao dizer “sou mulher, sou loira. Eu tenho peitos e bunda e um desejo insaciável de ser notada”, Madonna relembra que quando (na MDNA World Tour - 2012) ficou só de lingerie no palco e mostrou a bunda, alguns gostaram e outros acharam obsceno. Ela complementa dizendo que julgar a compaixão e temer o amor, isso sim é obsceno. Nesse momento do filme, uma voz forte e convocadora proclama: “Show your ass” (mostre sua bunda), o que me remete ao discurso moralista e inescrupuloso de m. feliciano ao dizer que católicos tem o corpo entregue à prostituição e todas as misérias humanas.
Me pergunto o que de fato ele entende por corpo e imagino as atrocidades que viriam na resposta a esta pergunta. Penso se ele tem refletido sobre o termo “prostituição”, principalmente em tempos onde se discute sua legitimação enquanto profissão. E o que seriam “as misérias humanas” a que ele se refere? E porque agora atacar os católicos? Seria receio de perder fieis para o carisma do Papa Francisco? Quão obscenas e desumanas considero as palavras de quem se propõe líder religioso ao passo que condena umas pessoas pela sua cor, raça, identidade, gênero, e imbeciliza outras com discursos moralistas e amedrontadores. Diante de ideias e atitudes assim, resta dizer: “Show your ass”, é menos vergonhoso e menos obsceno.
 
Falando em católicos, é intrigante ver membros de igrejas cristãs pentecostalistas repetindo discursos, condenações e atrocidades que a igreja católica fazia lá na idade média com mais estilo, convenhamos, pois certas performances “pastoricidas” estridentes são um descalabro.  E falando em prostituição, muito mais obsceno do que um corpo que presta serviços sexuais, e cobra por isso, é um corpo que berra e vomita discursos excludentes e discriminatórios atribuindo isso à vontade divina.
Madonna recorda ainda, em seu filme, que Jesus, Buda, Maomé, Moisés, entre outras celebridades religiosas, discursavam e agiam tendo em vista o amor entre as pessoas, sem usar a religião para fazer mal aos outros. Instigante o fato de uma artista pop, taxada de exibicionista, vadia, marqueteira, entre outros atributos, nos recordar dessa máxima religiosa e humanista. Se o corpo é pra louvar a Deus, como prega o pastor, e se Deus é amor e autor de todas as formas de vida, o corpo de quem viola os direitos humanos está longe disso. Penso que se certos líderes religiosos refletissem teologicamente, com sensibilidade e mais cautela intelectual, sobre o texto/poema bíblico da criação, poderiam talvez entender que, se Deus fez mulher e homem como corpos e disse que isso é sua imagem e semelhança, o corpo (com peitos, bundas, outros adereços e variadas cores, gêneros, identidades e orientações sexuais) é imagem divina.
 
Ao elucidar o medo da diferença como algo que leva à intolerância, em seu filme, a santa e pecadora Madonna ainda ironiza, provoca e invoca um discurso acerca do corpo dizendo: “Vem cá, baby, mostre a sua bunda. Mexa pra gente. Faça aquela dança que você faz tão bem, baby”. O convite a mostrar, mexer, dançar, me faz refletir outra vez sobre o que é SER CORPO, a desmistificar pregações imbecilizantes que veem o corpo como um saco de pancadas, como bode expiatório de pecados e louvores inventados, como instrumento submetido aos ditames de discursos e instituições dualistas/espiritualistas que desconsideram sua materialidade, humanidade, sexualidade. Conclamar os diferentes corpos a se amarem e a se importar com o bem comum seria menos obsceno que certos impropérios em forma de pregação.
 
Por Odailso Berté
Doutorando em Arte e Cultura Visual - UFG
Mestre em Dança - UFBA
Licenciado em Filosofia - UPF