25 de fevereiro de 2014

Nem tudo que reluz é ouro - Carnaval 2014

Desde o ano de 2006 tenho participado do Carnaval de Rua de Santo Ângelo/RS como coreógrafo de Comissão de Frente e de 2013 em diante tenho também experimentado a responsabilidade de ser carnavalesco e propositor de tema-enredo. A prazerosa satisfação de fazer parte disso vem da certeza de integrar um processo de criação desafiador e fértil que, mesmo sem tanta tecnologia e certas exuberâncias (vindas de fora), mostra à comunidade santo-angelense um desfile de carnaval inédito e genuinamente missioneiro, feito por nossa gente. É o que tem feito, a meu ver, a Escola de Samba Acadêmicos do Improvizo ao longo desses anos.


Observando e integrando o desfile do Carnaval de Rua de Santo Ângelo de 2014, atitudes de integrantes deste evento bem como as comoções provindas do resultado da apuração que deu à Acadêmicos do Improvizo o título de tetracampeã, me trouxeram instigantes reflexões e questionamentos. Agremiações carnavalescas mais tradicionais, acostumadas ao título de campeã em épocas mais remotas e sem a competitividade de hoje, obviamente tem dificuldade em assimilar derrotas consecutivas. Normal, nós humanos somos assim. As fórmulas antigas de se compor um tema-enredo e consequentemente um desfile de carnaval, nitidamente não vem mais dando certo. Há que se inventar novos jeitos de tecer e tramar os fios que costuram um tema-enredo. Desde a técnica artística usada para uma Comissão de Frente ao galão usado para detalhar as alegorias de uma carro, todos devem estar imbricados de modo a traduzir visualmente o tema-enredo e não a enaltecer a si próprios.

Por ter sido o divisor de águas entre o 1º e o 2º lugares do Carnaval 2014, o quesito Comissão de Frente despertou diferentes interpretações e muitas falas infundadas. Enquanto profissional pós-graduado da área de artes e dança (Especialização, Mestrado e Doutorado), com o devido respeito aos avaliadores vindos em anos passados, percebo que neste ano tivemos para o quesito Comissão de Frente um avaliador diferentemente formado e qualificado para desempenhar tal função. Quem mais que um profissional da área de dança e artes cênicas (ator, dançarino, coreógrafo, professor, integrante de importantes carnavais) para entender de corpo, movimento, expressividade, composição coreográfica, uso de elementos cênicos e adequação de figurinos no contexto do carnaval?

Tenho especial afeto pelo quesito Comissão de Frente, pois foi ele o caminho que me trouxe para o carnaval. Manter nota 10 neste quesito em todos esses anos de carnaval tem sido um trabalho desafiador e prazeroso. Penso que a nota vem como consequência da criação, da sua execução na avenida, da coerência artística e temática e dos pontos de vista com que o avaliador interpreta aquilo que lhe é mostrado, seja na sinopse seja na apresentação. A formação a partir da qual executo as Comissões de Frente que tenho criado ao longo de nove anos em Santo Ângelo vem da dança contemporânea, que não é um conjunto de giros, saltos e passos prontos como em outros estilos de dança ou técnicas artísticas. Mas sim, um modo, um caminho, um jeito de pensar e fazer dança mais aberto àquilo que o corpo, ou seja, a pessoa quer dizer/comunicar por meio de seus gestos e movimentos. Formado neste pensamento e prática de dança, ao criar uma Comissão de Frente, antes de giros, saltos ou outros virtuosismos, me preocupo em como os movimentos traduzem ou estão conectados ao tema a ser contado. Pois, como toda a Escola de Samba, a Comissão de Frente tem algo a ser comunicado. Nessa história a ser contada, saltar por saltar, girar por girar, por mais virtuoso que pareça, não garante coerência e conexão entre tema-enredo e coreografia. Nesse sentido, penso que a técnica (de dança, de teatro ou outras artes) não deve se sobrepor ao que precisa ser dito e traduzido em forma de movimentos, representações, alusões, simbologias, etc. Há que se contar bem uma história com movimentos contextualizados, figurinos característicos e funcionais e o adequado uso de alegoria.

Penso que um avaliador de carnaval não tem a obrigação de conhecer em extrema profundidade todos os temas que cada uma das escolas de samba irá apresentar na avenida. Os avaliadores não são “especialistas em generalidades” e nem têm a função de ler os mesmos livros que eu digo ter lido para criar o tema-enredo e nem saber em pormenores os detalhes da história que eu, enquanto carnavalesco/coreógrafo/compositor/Escola de Samba vou contar na avenida. E aí está a sabedoria do carnaval: enquanto Escola de Samba, Coreógrafo, Carnavalesco, saber contar bem o tema-enredo, traduzir de modo claro e esteticamente bem resolvido a proposta temática. Nas funções do avaliador, com sua experiência, vivência carnavalesca, embasamento e formação profissional, está a missão de ler a sinopse apresentada pela Escola de Samba e perceber se a execução feita durante o desfile é condizente e coerentemente conectada com o descrito. Se a prática performada no desfile condiz, enaltece e está imbricada com o discurso declarado na sinopse, é bem provável que a nota 10 será mantida. Pois, a título de informação, cada Escola de Samba já entra na avenida com nota 10 em todos os quesitos e vai perdendo pontos a depender das falhas e/ou incoerências que pode cometer ao longo do percurso.

Em um desfile de carnaval e em tantas situações de nossas vidas, nem tudo aquilo que brilha é joia rara, nem tudo aquilo que titubeia sofre uma queda e nem tudo que parece mais simples é digno de desprezo. Eu aprecio plumas e paetês, todavia, para além disso, um desfile de carnaval se faz, em grande parte, da coerência entre todos os elementos que o formam. E volto a enfatizar que, o galão e o acetato que decoram um carro, o tecido que estrutura uma fantasia ou a técnica artística que compõe uma Comissão de Frente não devem se sobrepor ao tema-enredo, à história que a Escola de Samba tem que saber contar/cantar/performar/dançar de modo plausível para os avaliadores e para o público.

Que venham muitos carnavais. Que esta festa e espetáculo popular se enraíze cada vez mais nas Missões e forme uma cultura de adesão e compreensão do que ele realmente implica e significa. Talvez assim o olhar da comunidade e a compreensão do público não permaneçam tão ofuscados por brilhos reluzentes e performances virtuosas que por vezes agradam o olhar mas não garantem a coerência artística e temática que deve estruturar um desfile de carnaval.


Odailso Berté
Coreógrafo e Professor de Dança
Doutorando em Arte e Cultura Visual - UFG
Mestre em Dança - UFBA
Especialista em Dança - FAP
Licenciado em Filosofia - UPF