8 de março de 2018

Mujeres líderes en la creación reunidas en la Casa Azul de Frida


Vanessa Guckel, la diseñadora de moda; Natalia Toledo Paz, la poeta; Gabriela Carrillo, la arquitecta; y Luz Emilia Aguilar Zinser, la crítica de teatro, reunidas ahí en la Casa Azul para compartir sus experiencias creativas. Distintas áreas de actuación, diferentes puntos de vista. Difícil fue oírlas y contener la emoción que camina por todo el cuerpo. Pues no és siempre que uno tiene la oportunidad de vivir algo así, celebrar y reflexionar sobre el día de las mujeres en la casa de Frida Kahlo junto a honorables damas que construyen la história en la contemporaneidad.

Cuantas lecciones, historias, experiencias, señales de vida que son sembrados por estos cuerpos en sus distintos campos de actuación, en la creación de atuendos, en la escritura poética, en la creación de ambientes y en el arte escénico. Una experiencia de penitencia y meditación fue sentarme y estar disponible a oírlas, abierto. Hombre que mira hacia atrás y al su rededor y se dispone a desnudarse del machismo, del patriarcalismo, del heterosexismo para aprender a ser diferente con ellas.

Ojos mojados, emoción desbordante cuando la directora del Museo Frida Kahlo, Hilda Trujillo, llena de fuerza y ternura recuerda las periodistas, adolescentes y tantas otras mujeres que cotidianamente son muertas, violadas y no respetadas en su dignidad. Una voz cálida y profética a decir: ¡Ya no más!

En el corazón guardé la pregunta que tanto quise hacer a ellas... 64 años después que murió Frida, estamos nosotros en su casa celebrando el día de la mujer. ¿Qué significa Frida hoy? La Barbie de Mattel... La posible nueva princesa de Walt Disney... La revolucionária comunista... La creadora fuertemente inspirada en la historia y cultura de su gente... La tehuana... La mujer cabrona... ¿Qué imagen de mujer Frida Kahlo inspira en la contemporaneidad?

Mirando a cada una de esas increíbles mujeres a discursar desde sus experiencias, vi distintas imágenes de Frida:

Frida la creadora de atuendos tan icónicos y fascinantes, testigos de su tradición indígena o de su transgresión de género que hasta hoy inspiran desfiles, coleciones, desfiles, famosos y desconocidos.

Frida la creadora de un lenguaje tan poético e irónico, fuerte y tierno capaz de tocar el corazón más duro.

Frida la creadora de un ambiente arquitectónico, la Casa Azul, tan hermoso y acogedor que todavía sigue reuniendo a tanta gente.

Frida la creadora de una teatralidad cotidiana que mezclaba ficción y realidad de la manera más hermosa, a punto de (con)fundir el personaje y su personalidad en una actuación vivificante digna de Oscar, amor y admiración.

En los cuerpos, colores, atuendos, gestos y en la fuerza de las palabras de cada una de ellas siento que se asciende la llama creativa para produzir cambios en lo que hoy se ve como realidad. La lucha contra el fundamentalismo que nos puede hacer regresar a una sociedad teocrática debe ser continua, atenta y creativa. Mujeres y hombres, heterosexuales, homosexuales y transexuales, índios, negros y blancos, juntos debemos luchar contra toda forma de discriminación, pues es amando uno al otro que podemos reconocer nuestras diferencias y en estas nuestra igualdad.

5 de março de 2017

Moonlight: Azul... da cor de (a)mar

Frame do filme Moonlight (2017)

A vontade era de ficar quieto, guardar lá dentro... Chorar sozinho, não emitir uma palavra sequer... Mas há narrativas, imagens, experiências que transbordam, transformam, transportam, e quando é assim, não há corpo que resista... Moonlight: sob a luz do luar.

A intensidade das minúcias, dos silêncios, dos olhares, da sinceridade de cada corpo, do azul do mar, do azul do luar, do calor e do tom das peles.

O contexto: a problemática racial, o bullying, a homofobia, a masculinização forçada, violenta e segregadora. Uma história sem vilões e sem mocinhos, apenas humanos, de erros, vontades, temores, desejos, silêncios... Como gritam esses silêncios... De olhares... Como falam esses olhares, sem emitir som algum. Só a mirada, o pulsar cardíaco, a tensão que suspende e chacoalha o momento.

A história de Chiron é a história comum de tantos meninos, de tantos de nós. Mas qualquer comparação, equiparação, assemelhamento, soaria intransigente... De uma pretensão vã, que não encontra em mim sustentação, pelo menos agora.

Little - Chiron - Black... Três capítulos, três nomes, três corpos para viverem três fases de uma vida.

A escola, que poderia ser um espaço alternativo ao lar, à sociedade e às truculências culturais, mostra-se um inferno onde impera a violência, o bullying, a humilhação, a injustiça, o medo, a masculinização forçada. O único momento em que o pequeno Chiron aparece feliz na escola é na aula de dança. Esse é o único momento em que se move com liberdade e com alguma alegria, sem medo. É cercado pelos colegas que com ele se divertem, improvisam movimentos, trocam passos, sorriem. A professora os observa e acompanha com amor.

Nos demais momentos em que é cercado ou (per)seguido pelos colegas, é espancado, humilhado, desrespeitado, desencorajado. A rudeza da violência - homofobia - bullying, a desumanidade disseminada no tempo-espaço de ensinar-aprender... Desumanizando a potência da sociabilidade e do bem comum que ali poderia florescer.

Se existem anjos, não tenho conceitos para conjecturar sobre, agora. Mas um tal Juan, mercador de drogas, que para alguns olhares "moral, politica e pedagogicamente corretos" poderia ser visto como o vilão, aconchega, aquece, ampara, acolhe com asas (pa)ternas.

É Juan quem ensina Chiron a nadar... As belíssimas tomadas em close-up fazem o azul do mar encher a tela... Como a vida de Chiron, inundada. Urgia que aprendesse a nadar para não sucumbir, morrer afogado. Após ampara-lo nessa lição de nado, Juan conta-lhe uma pequena história de sua infância rebelde em Cuba:

Numa certa noite de luar, corria descalço pelo rua, atrás de outro menino que o havia incomodado. De repente, foi interceptado por uma velhinha que lhe disse: "Você anda correndo por aí, apanhando toda a luz. Sob a luz do luar os meninos negros parecem azuis. Você é azul? Pois é assim que vou te chamar: Azul!". Chiron, que ouviu atento como quem ouve a um pai amoroso, pergunta: "Então o seu nome é Azul?". "Não", responde Juan, e segue: "Há um momento na vida em que você precisa decidir por si mesmo quem você é. Não pode deixar que ninguém decida isso por você".

Passa o tempo... Passa o vento... As ondas vem e vão... Nós corpos somos passageiros, somos feitos de carne, osso e horas... E de tudo o que disso deriva.

Tempos depois, um reencontro capaz de recobrar uma chama de vida. Um telefonema, uma canção, uma refeição... O olhar que suspende o momento fazendo milhares de anos luz passarem em fração de milésimos de segundos. O silêncio de afetos latentes... A brisa do mar, a luz do luar, as ondas a soar... O punhado de areia que a mão um dia apertou... O recostar da cabeça no ombro... Colo... Toque... Ventre... Amor...

Cessam as palavras.

Moonlight: sob a luz do luar (USA, 2017)
Direção de Barry Jenkins
Elenco: Mahershala Ali, Trevante Rhodes, Ashton Sanders, Shariff Earp, Alex R. Hibbert, Naomie Harris, Janelle Monáe, André Holland, Jahrrel Jerome.  

12 de março de 2016

A dança corrompida e pseudopatriótica

Cena do filme Pina (2011), de Wim Wenders.

Frame do vídeo tutorial da coreografia "Seja patriota".

Hoje duas imagens de dança turvaram-me o olhar: o filme Pina (2011), de Wim Wenders, exibido pelo canal Curta!, e o vídeo tutorial que ensina os passos da coreografia "Seja patriota", postado no facebook por um grupo que se intitula "Consciência patriótica". Não vou descrever aqui todas as sensações que tive nesses dois momentos, apenas digo que foi uma passagem de prazer à agonia, respectivamente. E perguntas brotaram-me no corpo: como pode a dança prestar-se a propostas tão distintas? Isso faz parte de seu potencial polimorfo? Qual a necessidade de dançar nesses tempos em que a corrupção vem mostrando suas/seus caras em nosso país? O que pode a dança em meio a tudo isso?

Lembra-nos a crítica de dança Helena Katz, e já o sabiam tantos dançarinos e coreógrafos, que A DANÇA É CORPO. Diferente de outros artistas que geram produtos/obras externos ao corpo (quadros, esculturas, músicas, textos, filmes), a obra de dança não existe, concretamente, fora do corpo que dança. A dança se dá em ato, no momento em que o corpo dança. Quando o corpo para de dançar, a obra-dança também para. Obviamente, permanecem sensações, ideias, afetos, no corpo que dança e no corpo que assiste. Mas a obra artística - dança - existe enquanto o corpo dança, não fora ou independente dele.  No caso dos dois artefatos aqui comentados (filme e vídeo), temos um registro da dança, ou a geração de outro tipo de obra/artefato a partir da dança: um filme e um vídeo.

Diz o filósofo existencialista Merleau-Ponty que NÓS SOMOS CORPO e não apenas temos um corpo como temos casas, discos, livros, carros, pratos etc. Corpo não é coisa, é ser - eu - você - nós. Se a dança é corpo e nós somos corpo, então a dança é o que nós somos - nós somos a nossa dança. Aquilo que dançamos (ideias, sensações, músicas, imagens, temas, histórias...), faz parte do que somos, do que nos constitui como seres-corpos humanos. As danças que admiramos, cultivamos e que dançamos dizem muito de nós. Mas o que o filme Pina e a coreografia "Seja patriota" tem a ver com isso? Pensemos...

Pina Bausch (1940-2009) foi uma coreógrafa que, em dado momento de sua trajetória artística, passou a "coreografar" de uma maneira diferente da tradicional: ela não criava a dança e passava para os dançarinos repetirem até decorar. Pina fazia perguntas que, por sua vez, faziam os dançarinos pensar em suas historias de vida. A resposta a essas perguntas eram em forma de movimentos, gestos, ações, pequenas falas. Pina dizia: "não me importa como o corpo se move, mas o que move o corpo". Ela se importava com as experiências de vida dos corpos e como elas podiam mobilizar a dança deles. Os corpos/dançarinos de Pina dançavam aquilo que eles eram.

Na coreografia "Seja patriota", são executados passos de dança bastante conhecidos, vistos em muitas outras danças. Talvez, para alguns, esses passos podem ser mais bonitos e prazerosos do que os movimentos da dança de Pina Bausch (não muito comuns e até difíceis de serem aprendidos e repetidos, porque eram sempre inéditos, configurados com exclusividade em cada novo processo criativo). "Seja patriota" é uma coreografia - conjunto de passos, vistos em muitas outras danças, que podem ser usados para transmitir qualquer coisa, tudo ou nada ao mesmo tempo. É um conjunto de movimentos que servem apenas como veículo de transmissão de uma mensagem pronta e predeterminada. Aí estão corpos tomados como coisa/instrumento/veículo, sobre os quais pesa uma música, uma letra, uma ideologia que esmaga a dança e faz dessa arte um mero panfleto de politicagem que: incita o ódio e o combate à corrupção apenas de um partido político; cega os corpos para não verem a corrupção de tantos outros partidos, especialmente daqueles que promovem e incentivam essa mesma "dancinha patriótica".

Esta é uma situação em que a dança se torna um mero instrumento para o velho ditado: "a melhor defesa é o ataque". Atacar a corrupção do outro para esconder a minha. Um caso em que os corpos enfileirados, repetindo os mesmos movimentos, ao mesmo tempo, encarnam aquela musiquinha: "marcha soldado, cabeça de papel". Impõe-se aos corpos uma ideologia nefasta (classista, racista, homofóbica, sexista) e os corpos a confirmam na medida que a incorporam e passam a viver de acordo com ela. Ao repetir a coreografia pseudopatriótica (pois é um falso patriota aquele que diz combater a corrupção atacando apenas uma parte dela e escondendo a sua), os corpos se moldam a esse tipo de ideia e passam propagá-la e comunicá-la para contagiar outros corpos.

NOSSA DANÇA É O QUE NÓS SOMOS! Ao dançar a ideologia pseudopatriótica os corpos dançam aquilo que são, ou seja, as ideias que lhes foram impostas e que eles incorporaram. Os corpos dançam aquilo que compõem sua história, sua vida, sua forma de ser. Nessa ótica, tanto os corpos da dança de Pina Bausch como os corpos da dança pseudopatriótica dançam as suas experiências, aquilo que vivem, que aprenderam ou que lhes foi imposto e assimilaram de modo acrítico. Para não pensarmos que tudo é farinha do mesmo saco, algumas diferenças gritantes: os passos da dança de Pina Bausch não são facilmente reconhecidos, pois eram criados por cada um dos dançarinos, de acordo com as experiências que recordavam através das perguntas. Ou seja, eram passos - que prefiro chamar de movimentos (pois passo se restringe aos pés e movimento pode referir o corpo todo) - que nasciam sempre novos. Já os passos da dancinha pseudopatriótica, são facilmente reconhecidos, não criados em conexão com experiências de vida dos corpos que os dançam, mas ajuntados aleatoriamente e repetidos para dizer qualquer coisa desconectada deles. O que garante o significado desses passos de dança não são eles próprios ou a relação dos dançarinos e do público com eles, mas a ideológica letra da música que essa dança tenta ilustrar. Uma dança-ilustração da ideologia incorporada e confirmada pelos corpos.

Enquanto a dança de Pina Bausch (e muitas outras formas de dança) convida os corpos que assistem a construir diferentes significados para os movimentos que os dançarinos criam, a dancinha pseudopatriótica impõem, aos corpos que a dançam e aos que a assistem, um único significado predeterminado. Este significado, ditado pela letra da música, incita o ódio entre os corpos e propõem um falso combate à corrupção, olhando apenas para uma faceta do problema e cegando os corpos de perceberem a conjuntura da atual situação do nosso país.

Olho para uma das últimas cenas do filme Pina, em que uma dançarina usa uma pá para jogar terra sobre a outra que dança no chão... Apesar de estarem tentando enterrá-la, ela não desiste de dançar, segue movendo-se toda empoeirada. A terra entra nos cabelos, nos olhos, nas orelhas, mas ela não sede. Ela dança, dança, dança, pois do contrário, se parasse, estaria perdida, liquidada, enterrada. Essa é uma das máximas de Pina Bausch que encerra o referido filme: "dance, dance, dance, do contrário estaremos perdidos". Assim, também quero encerrar esta pequena reflexão no sentido de seguirmos dançando nossas experiências, aquilo que nos constitui, a nossa relação com os outros e com o mundo.

Façamos com nossas danças, também uma espécie de espelho para (re)conhecermos constantemente aquilo que somos, aquilo em que acreditamos, que defendemos e que, portanto nos constitui. Não façamos da dança um panfleto ilustrativo de ideologias perversas, mas uma forma do corpo (re)organizar e dizer dos modos como se relaciona com o mundo. Penso ser muito mais patriótica, democrática, amante e defensora do seu país a dança que possibilita aos corpos pensarem em si, nos outros e no mundo; a construir diferentes significados e não engolir significados únicos e prontos. Acredito, faço e luto por danças que possibilitem aos corpos serem autônomos e não autômatos.    

Odailso Berté
Doutor em Arte e Cultura Visual (UFG)
Mestre em Dança (UFBA)
Especialista em Dança (UNESPAR)
Licenciado em Filosofia (UPF)
Coreógrafo e Professor de Dança

18 de outubro de 2015

Solidão Pública: o estar só que nos questiona

Adilso Machado em "Solidão Pública", 16/10/2015.

A solidão dele seria também nossa? Que solidão vertiginosa é essa que em vez de silêncio e reclusão sacode o corpo freneticamente como se estivesse numa have particular? Que corpo solitário é esse que soa como um "the walking dead" plugado numa tomada de 220 volts?

Adilso Machado, com a coreografia "Solidão Pública", apresentada no dia 16/10/2015, no Theatro Treze de Maio de Santa Maria/RS, instaura atravessamentos perceptivos que surpreendem a experiência estética acostumada a 'gostar' ou 'não gostar', 'achar bonito' ou 'achar feio'. Está aí uma forma de dança que empurra o corpo espectador nos precipícios interpretativos onde a dança é uma densa névoa e não floquinhos de neve.

Com a propriedade de um corpo atento a como seu treinamento se conecta com sua dança, seus estados corporais, articulados em cena, desenham formas, imagens, movimentos que não fornecem representações caricatas da solidão. Antes, desatam modos vertiginosos de ser e estar sozinho. Mesmo acompanhado em cena pelo DJ, que manipula a trilha em tempo real, Adilso é um corpo dançando só, imerso, envolto e comprometido com a configuração de sua dança.

"Solidão Pública" é uma dança que incomoda pois subverte a percepção estética convencional tirando o espectador do lugar comum de achá-la bonita ou feia. Pessoas na plateia se contorcem, conversam, alteram a respiração, arregalam os olhos e certamente se questionam: "Por que esse corpo faz o que faz em cena?". Conforme Katz (2004), a dança que causa esse tipo de tensão e indagação pode ser chamada de contemporânea. Não que a dança de Adilso necessite de classificação ou caiba dentro de um estilo de dança.

Não apenas pelo simples fato de ser um solo, mas, ao dançar só sua "Solidão Pública", Adilso possibilita acompanharmos seus trajetos de movimentação despertando-nos a preocupação de que a qualquer momento ele vai sucumbir, de que ele não vai resistir. Parece que a possibilidade de cansar, prostrar, cair, ceder, torna-se potência para resistir e (trans)formar o movimento e assim escamotear as possibilidades de enjaular a solidão em significações fáceis.


Odailso Berté
Doutor em Arte e Cultura Visual   
Mestre em Dança
Especialista em Dança  
Licenciado em Filosofia 

12 de outubro de 2015

Dançar Frida Kahlo é narrá-la: review do espetáculo Me Kahlo Sashay Away


Dançarino Crystian Castro no Espetáculo Me Kahlo Sashay Away (2015)
Foto: Patricia Cichelero
A abertura de sentidos de uma obra de arte se dá em detrimento de seus significados preestabelecidos (sic), já dizia Eco, não a ninfa, o senhor italiano, aquele que pode ser nobel de literatura esse ano.
A arte é inocente da obscuridade que projetamos num espetáculo. Esse negócio de luzes sobre a sensibilidade, de redução do sublime ao objetivo, é simplesmente absurdo. Claro que todos nós, em maior ou menor medida, nos sentimos burros diante de fatos com os quais não sabemos o que fazer: em qual gaveta do meu pensamento cotidiano irei colocar um bailarino sendo lenta e sincopadamente desenrolado por uma longa mangueira de jardinagem? Pessoas passando umas pelas outras com um sapato de salto alto em cima da cabeça? Na gaveta do absurdo, do nonsense - alguém responderia. De fato, é um tanto isso que a arte se propõe explorar – o absurdo.
Mas o preocupante é quando esse engavetamento de impressões não consegue se desgarrar do cotidiano, quando ficamos simplesmente estupefatos com o fato de estarmos esperando o desvelamento dessa coisa mística que é a arte, e vermos, ora essa, uma inexplicável mangueira de jardim.
É claro que a mangueira, no caso, pode ser uma referência (in)direta às bandagens que se enrolavam e desenrolavam em torno de Frida após seu acidente de bonde, e a expressão de tédio profundo do bailarino é demasiado próxima a de Hayek na cena equivalente no filme (FRIDA, 2002). A mangueira volta no final, como o clássico fechamento do (ou início de um novo) círculo, só que agora envolve outro dançarino e - minha opinião - a remontagem de uma das telas de Frida. É quase claro, pra mim, que aqueles sapatos em cima da cabeça formavam um ângulo de cunha com as mãos dos dançarinos e insinuavam sombrinhas burguesas em meio a convenções sociais de época: a introdução de Frida aos salões, quem sabe. Mas a despeito desses significados, ou possíveis significados, o preocupante é que muitas vezes a estupefação chega a interromper o fruir estético, ou mesmo aquela sensação de tentar fingir que sabia o que estava acontecendo infunde-se em nossa visão do agora.
            Saber, no fim, não é a questão. Se você não conhece a biografia de Frida, não deve esperar que um espetáculo lha forneça. Mas, veja bem, nem por isso o espetáculo deixa de ser uma narrativa, nem por isso ele não narra Frida. E, enquanto, uma narrativa pictórica e corporal que ele é, nos trará impressões mais diretas ainda que palavras, já que sem elas não há perda de tradução, e até mesmo aqueles que nunca ouviram falar de Frida podem sentir o que cada um daqueles lindos personagens, lúdicos e enfermos,  que se fundiam e se visitavam, expressava, e como cada um narrava uma Frida com seu próprio corpo. 
            E que há de mal em se perder? Que há de mal em suas lágrimas caírem e você não saber se é por compaixão biográfica ou paixão estética?
            Os quadros, as cores, os sofreres e os traços de Frida passeavam nas feições, motes gestuais, e ritmos dos moços e das moças dançantes. Passeadores entre flores, as flores nossas e de Frida.
Havia mo(vi)mentos nos quais era o puro corpo falando e nós espectadores entrávamos numa espécie de transe ancestral diante do movimento de sons e corpos. E no fundo era isso o que senti com toda a força e me arrebatou na noite de sexta (02/10): o movimento. A capacidade da dança compor uma narrativa dinâmica e arrebatadora me impressionou, pois costumo buscar tal coisa em literatura, ou seja, em palavras. Ali era tudo gestos, uma beleza que nos fazia ora sorrisos despronvindos de razões ora lágrimas inexplicadas.
Review do espetáculo Me Kahlo Sashay Away, direção de Odailso Berté, criação e produção do Laboratório Investigativo de Criações Contemporâneas em Dança (LICCDA), do Curso de Dança – Licenciatura da UFSM. O grupo promete ainda para esse mês de outubro algumas intervenções no cotidiano de nossa Santa Maria com especial intuito de abrir o debate acerca da dança/arte contemporânea. Atentemo-nos, e aguardemos as bonitezas que ainda estão por vir.

Por GIONATAN PACHEGO
Bacharel em Filosofia - UFSM

21 de julho de 2015

Anotações sobre sexo, a cidade, as negas, os políticos, os heróis, os vampiros, os zumbis

São muitas as imagens que se entremeiam em mim, agora. Escrever sobre elas e as situações que as envolvem é um desejo que não para de beliscar-me. Não estabeleci uma ligação satisfatória entre estas situações e imagens. Não penso que isso seja necessário. Tem algo latente nelas que impele a escrita. Acabo de ler a carta de Jean Wyllys à Eduardo Cunha. Há dias, assisti aos episódios da temporada única da série brasileira "Sexo e as Negas" (2014). E estou assistindo à segunda temporada (e última) da série norte-americana "The Carrie Diaries".

A carta de Jean a Cunha, publicada na Revista TPM (Jul. 2015) é um tapa com luva de pelica tigrada. A irreverência e a competência da 'beesha' em apontar o fascismo e as incongruências nas atitudes pseudo-políticas e pseudo-cristãs do destinatário da carta, são de uma precisão incontestável. A carta (co)move sentimentos e posicionamentos ao chamar para o diálogo - amoroso e exigente - alguém, como tantos outros, que tem feito da política um palco demagógico de manipulações, mentiras, ganância e imbecilização de pessoas por meio da fé. Admiro essa capacidade inquieta e sagaz de cutucar a onça com a vara curta, dura e colorida. Mesmo não sendo ele drag queen, vejo em Jean aquilo que RuPaul busca nas competidoras de seu reality show: charisma, uniqueness, nerve and talent. Apesar da homofobia, há homens e mulheres que, com mais ou menos possibilidades, têm se expressado e se empenhado em reconhecer e fortalecer a dignidade de homens e mulheres diferentes. Pela orientação sexual, pela formação de "PJoteiro" e por vários princípios políticos e humanistas, vejo em Jean tantas possibilidades de identificação. Fazendo uso de suas próprias palavras, na carta, afirmo: Jean é uma das "referências positivas" às gerações mais novas, que lhes permite e incentiva a "viver sua orientação sexual sem vergonha e com orgulho".

Também foi o Jean quem me fez questionar a não continuidade da série global "Sexo e as Negas". Sou cada vez mais convicto da reflexão do teórico cultural e sociólogo Stuart Hall sobre os significados não estarem nos artefatos, nas imagens, mas em nós que os vemos e nos contextos onde estamos inseridos, que influenciam nossas formas de ver e significar. Só assim, tento compreender a reação contrária de muitos a ponto da série ser cancelada. É surpreendente como ainda não conseguimos compreender a ironia, a possibilidade de abordar determinadas situações sem dar moral da história e significados predeterminados. Machismo? Preconceito? Racismo? Sim, eram abordados na série de modo perspicaz e bem humorado, com o protagonismo de quatro mulheres negras suburbanas e suas relações afetivas e sexuais. Semelhantemente à inspiradora série norte-americana "Sex and the City", sexo, nesta série, não remetia à pornografia e à exploração, mas aos relacionamentos afetivo-sexuais e às vivências cotidianas que em torno deles se desenhavam. Diferentemente das opiniões reacionárias, vi as negas e seu sexo, como sinais de contravenção, como imagens de provocação que forjam e criam novos espaços na mídia e em nossos imaginários. Imagens e espaços outros que borram aqueles das senzalas de Sinhá Moça, das favelas e das cozinhas de tantas outras novelas. Pensando que cada um constrói o significado, fico com a imagem de negras lindas, audaciosas, tão valorosas e dignas de amor e respeito. Personagens as quais eu gostaria que fossem reais, das quais eu gostaria de ser amigo. Por isso, saudade de "Sexo e as Negas".

Também a série "The Carrie Diaries" foi cancelada prematuramente, na segunda temporada. O sucesso da série norte-americana "Sex and the City" e sua protagonista Carrie Bradshaw levaram Candace Bushnell (autora do livro que inspirou a série original) a escrever outros dois livros que narram a trajetória da jovem Carrie antes do sexo (seus relacionamentos) e da cidade (sua paixão por New York). Esses dois novos livros "Os diários de Carrie" e "O verão e a cidade" inspiraram a criação da nova série "The Carrie Diaries". Ambientada, de modo fascinante, nos anos 80 dos USA, a série transpira elementos dos costumes, da moda, da arte e cultura local daquele período. Cenas como uma festa onde Madonna está prestes a chegar, os bastidores da revista Interview e situações hilárias envolvendo a peruca de Andy Warhol, entre tantas outras, formam um enredo envolvente sobre a adolescência e juventude de Carrie e seu american dream:  tornar-se uma grande escritora e encontrar um grande amor em New York. Infelizmente, a baixa audiência fez com que a série fosse cancelada. Carrie foi derrotada por heróis, zumbis e vampiros e seu poder de audiência.

Apesar de também gostar de heróis, zumbis e vampiros, não me furto a perguntar: por que temos dado mais audiência a esses seres e suas catástrofes do que aos relacionamentos e aos afetos? Que estágio humano e cultural é esse que atingimos em que as emoções, os dramas e os romances perdem lugar para as tensões, os medos e sobressaltos? Por que assistir situações afetivas, semelhantes às nossas, parece ter se tornado algo enfadonho? Por que as personagens e situações mais irreais parecem ser mais excitantes? E saindo da TV, como os vampiros e falsos heróis, disfarçados de políticos, em nosso país, conseguem a tamanha audiência que os mantém em seus postos? Como podem os discursos fajutos de bondade desses vilões convencerem a tantos?    

Recordo de uma passagem de Stephen Rebello, em seu livro sobre os bastidores de Psicose, ao comentar que, nesse filme, de 1960, o monstro é um humano comum, a maldade está dentro de casa, o matador é alguém da família. Esse tipo de produção artística que reposiciona nosso cotidiano diante de nossos olhos sempre me toca de maneira especial. Penso também que os heróis, zumbis e vampiros das séries podem ser metáforas potentes, imagens plurissignificativas, a depender de como os vemos e interpretamos. Já os vampiros sugadores que têm assento no congresso nacional, a exemplos dos que Jean Wyllys costuma criticar, precisam ser exterminados e sua audiência precisa ser despertada dos feitiços, hipnoses e bençãos que a imbeciliza. Oxalá nossa capacidade interpretativa nos possibilite usar e analisar os personagens que consumimos, dando-lhes significados que ressignifiquem nossas vivências cotidianas.

Quando sexo tem a ver com política... Num dos episódios da série "Sex and the City", Carrie namora um político de Manhattan. Ao negar-se a realizar uma das fantasias sexuais do nobre político (mijar nele durante a relação sexual), Carrie tem seu namoro rompido. Ao romper, o político alegou que namorar com uma colunista de jornal que escreve sobre sexo e relacionamentos não era bom para sua campanha e imagem pública. Mijar nele, sim. Escrever sobre sexo, não. Tudo e todos que expressam de modo mais aberto traços de nossa humana sexualidade - principio da vida e do prazer - causam diversificados tipos de frenesi. Sexo ainda é tabu, é visto como sujeira, precisa ser mantido no privado. As tantas e reais sujeiras feitas com a política, os direitos humanos, os cofres e os espaços públicos, crescem e se multiplicam sem qualquer preservativo, precaução, cuidado.  

Dessas anotações e imagens, fica a saudade das Negas, da Carrie e seu sexo divertido, bonito e digno, suas relações e vivências tão semelhantes às nossas. Fica a saudade de séries como Sex and the City, Friends, Six Feet Under, One Tree Hill, Brothers & Sisters e tantas outras que davam a ver as relações humanas e cotidianas sem tantos artifícios. Ficam apelos para que mais defensores das minorias sexuais, como o Homem Maravilha (codinome dado a Jean Wyllys no BBB 5), possam se expressar e fazer política de modos mais honestos, benéficos e transparentes.

21 de março de 2015

STRIKE A POSE contra a homofobia!

Nos meados de março de 1990, Madonna lançava o videoclipe da música "Vogue". Vinte e cinco anos depois da música e videoclipe terem se propagado por todo o mundo - sem o veloz suporte da internet -, como fã de Madonna e pesquisador de Cultura Pop, pergunto: Por que ainda importa falar de Vogue? Por que faz sentido, hoje, no Brasil, perante tanta intolerância, fundamentalismo religioso, homofobia violenta, corrupção política, apelos a regimes ditadores e à família tradicional como modelo exclusivo, refletir sobre Vogue?

Videoclipe Vogue, direção de David Fincher

De modo estratégico, em 1990, Madonna se apropriou de elementos provindos de ambientes gays, articulados na década de 80: dança, desfiles, gestual, vestimentas, concursos, batalhas, performances. Forjado por gays e negros, esse ambiente underground de New York, especialmente no Harlem, chamado de Ball Culture, possibilitava, em diferentes clubes gays, que estes sujeitos expressassem, vivenciassem e se mostrassem de modos que, no dia a dia, a sociedade branca, patriarcal, machista e heterosexista  impedia que o fizessem.

No ambiente da Ball Culture surge a dança Vogue. A partir de imagens de revistas de moda (como Elle e Vogue), estrelas de cinema e de séries de TV, hieróglifos egípcios, movimentos de ginástica, poses de modelos, trejeitos femininos de passarela e de manuseio de instrumentos de maquiagem, era criada a dança Vogue. Entre os concursos e batalhas feitas nas "casas", como eram chamados os clubes, a dança Vogue era uma das categorias. Entre os expoentes da dança Vogue estão o dançarino e coreógrafo Willi Ninja (1961-2006), considerado "a mãe da Casa Ninja" e Jose Xtravaganza considerado "pai da House of Xtravaganza" e que dançou no videoclipe de Vogue com Madonna e em várias apresentações e shows da época. Jose estudou na School of Performing Arts, em La Guardia High School of Music and Arts e também foi bolsista na New School Ballet com 10 anos de idade.

Jose Xtravaganza. Foto de Len Prince.

Recentemente, Jose, junto com Slam, outro dançarino do videoclipe Vogue, em homenagem aos seus vinte e cinco anos, gravaram um vídeo, onde dançam... Motivo este que despertou-me, com emoção, essas palavras. Vinte e cinco anos depois, já não mais tão jovens, mas extremamente ágeis e exímios na execução de cada gesto da dança Vogue, essas imagens me questionam acerca da força política dessa dança, de outras danças, do corpo, do gesto.

Homens dançando Vogue, Stiletto, Stret Jazz, com ou sem sapatos de salto alto, são imagens de contravensão e subversão perante sistemas dogmáticos, fundamentalistas e homofóbicos. São imagens e ações performativas que instauram estranhamento, excedem as ações cotidianas que repetem, potencializam formas de uma política estética, (re)criam realidades possíveis e forjam políticas de representação e reconhecimento identitário dos sujeitos LGBTT.

Quando Madonna lança o produto Vogue, música e videoclipe, sim, ela produz mais uma mercadoria artística no vasto mercado da Cultura Pop, fruto de seu trabalho e daquilo que ela se propõe como cantora pop. Me instiga pensar que, a produção e venda de Vogue vem aliada à sua prática de defesa e reconhecimento dos direitos LGBTT, desde o princípio de sua carreira até hoje. Madonna nunca escondeu sua predileção por frequentar boates gays, conviver, trabalhar e defender estes sujeitos.

Penso que dançar Vogue, fazer pose e recriar esse estilo de dança na contemporaneidade é uma forma de fazer política, criar discursos gestuais críticos, criativos e performativos. É um modo de combater a ignorância, o fundamentalismo religioso, os falsos líderes que imbecilizam sujeitos com seus gritos, ritos e violências sagrados e ainda ocupam cargos políticos. Roubam seus fiéis, roubam os cofres públicos e ainda pregam a mais falsa, prepotente e misógina moral que se aplica somente ao sexo, àquilo que temos entre as pernas. Repudiam um beijo de novela entre duas mulheres? Jesus e seus discípulos se cumprimentavam com beijos, o ósculo da paz, diz na bíblia. Sim, homens se beijando.

Eles mutilam o próprio amor cristão, pois Jesus era um nazareno lindo, apaixonado pela vida e defensor de todos os excluídos e injustiçados e não esse bocó, branquelo e mágico-curandeiro que as religiões veneram. Perante esses que violentam as diversas expressões identitárias e a dignidade humana, repito a frase de Madonna (não à toa, Nossa Senhora): STRIKE A POSE - FAÇA POSE! O corpo é meio e mensagem ao mesmo tempo, portanto faça sua pose - política, faça jus à democracia e se expresse. AMÉM, IRMÃS!!! Come on, Vogue!

Prof. Dr. Odailso Berté

23 de novembro de 2014

SEDANCE - pés firmes e provocadores na estrada da dança


Em junho de 2014, quase um mês após ter chegado na Universidade Federal de Santa Maria/RS, como professor do Curso de Dança - Licenciatura, iniciamos as projeções e primeiros insights para este que seria o I SEDANCE - Seminário de Dança, Contemporaneidade e Educação. Superando nossas expectativas de ser um 'evento caseiro', o SEDANCE, entre os dias 21 e 22 de novembro de 2014, aproximou bailarinos, coreógrafos, professores, estudantes e pesquisadores das cidades gaúchas de Santa Maria, Pelotas e Porto Alegre e também de São Miguel do Oeste/SC, Campinas/SP e Goiânia/GO.

Com sua larga competência e sensibilidade, a Profa. Dra. Márcia Strazzacappa nos brindou com instigantes reflexões sobre o artista-docente e os tantos processos artísticos, pedagógicos e institucionais que integram o fazer-pensar dança na Universidade. Com sua habilidade e simpatia, o Prof. e Coreógrafo Jean Guerra, nos fez dançar e suar no curso sobre práticas artísticas e pedagógicas no campo das danças urbanas.

A tarde do dia 21 de novembro ainda foi repleta de compartilhamentos, trocas de ideias e questionamentos em torno de diferentes pesquisas em dança. Os grupos temáticos congregaram trabalhos sobre processos pedagógicos, criativos e questões contemporâneas sobre corpo envolvendo os campos da saúde, da cultura, da arte e da educação. Instigantes provocações emergiram no sentido de (re/des)construirmos formatos acadêmicos enrijecidos a partir das mobilidades e performatividades do campo da dança.

A noite do dia 21 acentuou o caráter artístico do I SEDANCE trazendo para o palco do Teatro Caixa Preta da UFSM coreografias de diferentes grupos, bailarinos e coreógrafos, comentadas pelos professores e coreógrafos Carlise Scalamato, Jean Guerra, Márcia Strazzacappa e Sílvia Wolff. Propostas coreográficas ousadas, provocadoras e emocionantes denotaram a diversidade de possibilidades para se criar, pesquisar e questionar os fazeres contemporâneos em dança.

Nem mesmo a ameaça de chuva impediu que, no dia 22 de novembro, o I SEDANCE parasse o trânsito do centro da cidade de Santa Maria, junto da Muovere Cia de Dança dirigida pela Professora e Coreógrafa Jussara Miranda, de Porto Alegre/RS. Com o projeto DESVIO - ganhador do Prêmio FUNARTE Artes na Rua (Circo, Dança e Teatro)/2014 - que integra intervenção urbana, oficina de dança e espetáculo, a Cia Muovere interviu no cotidiano do centro da cidade, dançando e fazendo os congressistas do I SEDANCE dançar em plena avenida, sobre a faixa de pedestres. Um ato político-estético de provocações impactantes que (con)fundem arte e vida evidenciando a potência da dança contemporânea e suas interpelações ao ensino - criação - pesquisa em dança, conforme propunham as intenções do I SEDANCE.

Na tarde do dia 22, com a coordenação da Profa. Dra. Daniela Castro (UFPel), o I SEDANCE abrigou o I Encontro Estadual dos PIBIDs Dança do RS, reunindo docentes e estudantes gaúchos em torno de reflexões e vivências acerca de práticas interdisciplinares para o ensino de dança na escola. Na sequência, as apresentações de pôsteres sobre pesquisas possibilitaram um panorama das ações artístico-pedagógicas do PIBID Dança desenvolvidas em diferentes contextos gaúchos.

O encerramento desses dois dias intensos de muita dança, pesquisa e possibilidades para o ensino de dança e atuação do artista-docente, não podia ter sido mais encantador. A Muovere Cia de Dança fez do gramado traçado com cal, ao lado da Reitoria da UFSM, o palco para a apresentação de dança em cena aberta DESVIO. Participantes do I SEDANCE e habitantes de Santa Maria que visitavam o campus da UFSM foram brindados com a perspicácia, a sagacidade, a ironia e a provocação de Diego Mac, Jussara Miranda e os bailarinos da Muovere. Risos, emoções e reflexões sobre tantos e diferentes trajetos, pegadas, indicações, caminhos e formas de mobilidade  deixaram a certeza e vontade de querer fazer, ver e dançar "it again".

E assim, tantas provocações trazidas e emergidas no I SEDANCE permanecem repercutindo nos corpos. O SEDANCE (de)marca com afetos, movimentos e rastros de cal na grama, a vontade e o ímpeto do Curso de Dança - Licenciatura da UFSM de fazer-pensar dança em diálogo com a contemporaneidade, com os corpos e danças que vêm para a Universidade aprender e ensinar, construir e expandir a dança enquanto arte e área de conhecimento. Temos muito o que dançar e para isso, muito me animam as palavras da Coreógrafa Jussara Miranda acerca de sua participação no SEDANCE: "Realizado artesanalmente e a quatro mãos e braços alunados, o SEDANCE colocou-se na estrada da dança com pés firmes e provocadores, sem medo!"




Prof. Dr. Odailso Berté

14 de julho de 2014

(in/re)flexões sobre uma mostra de dança



De 'um filme, um objeto, um círculo, um quadrado', para uma 'torta de amora', um 'stillo' ousado, um 'aripuruc' lindo como 'a mesa verde' do querido Jooss... Algo 'moderadamente lento, seresteiro' beijou-me os olhos ao passo que algo 'orbital' mudou-me o foco... 'Me deixe ver seus olhos' foi um singelo pedido em forma de movimentos que, sim, entre lágrimas transportou-me para outro modo de ver 'a olho nu'. Com 'vela sobre água' senti-me instigado, tocado por 'alguma coisa nossa' que, entre 'concepção urbana' e 'corpo nordestino', possibilitam pensar-dizer, aqui, algo do que lá senti.

Prestigiar formas de organização coreográfica, perceber diferentes modos de composição e interpretar diversificados caminhos e afetos que podem ter desencadeado processos, são ações viáveis quando nos deparamos com trabalhos pungentes de significações. Me refiro aos trabalhos apresentados na I Mostra Artística dos Alunos dos Cursos de Licenciatura e Bacharelado em Dança da Universidade Federal de Santa Maria, no Teatro Caixa Preta, em 10 de julho de 2014.

Complexidades, cotidianidades, musicalidades e culturalidades se transfiguraram na cena e possibilitam-me ver a(s) dança(s) como imagens do e no corpo que podem aludir e iludir, agradar e agredir, imitar e limitar... Os modos de ver e compreender a dança são tão infindos quanto os modos de vida que com ela se relacionam, ou seja, quanto os corpos que assistem/percebem os corpos que dançam.

Trabalhos como 'a olho nu', 'aripuruc', 'torta de amora' e 'moderadamente lento, seresteiro' produzem uma densidade cinestésica, acometem a imaginação e desdobram diferentes ideias acerca de relações interpessoais, de desejos e escolhas que conformam subjetividades. 'Um filme...', 'vela sobre água' e 'orbital' são construtos coreográficos instigantes que provocam o pensamento deixando reticências poéticas, vontades de ver mais.

'Alguma coisa nossa' e 'corpo nordestino...' atentam para traços celebrativos, festas do corpo que estão tão dentro quanto fora, no quarto e na praça, no eu e no grupo. 'Stillo' assalta a percepção ao borrar fronteiras de feminino e masculino, ao desfilar no palco uma política queer, ao esboçar reposicionamentos de discursos, gestos e imagens da cultura pop muitas vezes taxada de mercadoria alienante por certos discursos acadêmicos tão enfadonhos e deterministas. 'Me deixe ver seus olhos', 'partida' e 'por bendizer-te' sugerem diferentes modos de lidar coreograficamente com a singeleza, a serenidade, a saudade, sentimentos/afetos tão dignos quanto os pensamentos/ideias.  

Entre processos e produtos, construções e construtos, aqueles corpos mostraram seus feitos, ações que estão se fazendo, outras ainda por fazer e/ou refazer. A potência e a perspicácia desses jovens dançarinos alargam as possibilidades de constante (des/re)construção da dança como arte e área de conhecimento. Dos trabalhos não citados aqui, não significa que não tenham excitado a percepção e a imaginação, trata-se apenas das diferente formas de eloquência, dialogicidade e interação que, no conjunto, proporcionaram.

Diante desses instigantes potenciais, emergem sonhos, projetos, produtos e outros processos ainda em devir. Renova-se uma escolha que em momento algum deixa olhar pra trás como forma de arrependimento. Escolher a dança como projeto de vida, área de atuação, modo de comunicar-se com o mundo, fortifica-se diante de danças assim.

Odailso Berté
Coreógrafo e Professor de Dança
Doutorando em Arte e Cultura Visual
Mestre em Dança
Especialista em Dança
Licenciado em Filosofia

Foto: Giacomo Giacomini
Dançarinos: Amanda Silveira e Crystian Castro

20 de março de 2014

Entre brumas, cores e estrelas, a magia de um carnaval


Nos dias em que me encontrava absorto e meio embevecido principiando a leitura da obra O Tempo e o Vento, há uns trinta dias atrás, um convite me foi feito: criar uma coreografia de comissão de frente para o desfile de carnaval de uma Escola de Samba da terra de Erico Verissimo. Mal sabia eu que as palavras iniciais de Erico em sua saga referindo-se a “uma noite fria de lua cheia” onde “as estrelas cintilavam sobre a cidade”, ganhariam um sentido todo especial na noite envolta em brumas na qual a Imperatriz completou a figura de seu hexágono dourado de estrelas.

Para compor a coreografia em torno de um caldeirão mágico que enredava os primórdios da história da maquiagem, busquei inspiração nas palavras de Marion Zimmer Bradley e nas imagens de Uli Edel quando estes, em forma de literatura e cinema, desvelam aos nossos sentidos “As Brumas de Avalon”. Poéticos gestos dos magos Morgana e Merlin enfeitiçaram a composição coreográfica que, junto ao belo contexto de toda a Escola, levou para a avenida do samba um espetáculo cheio de encantos, cores e movimentos.

O mergulho na noite fria de 15 de março de 2014 tornou-se literalmente mágico e misterioso quando, ao sair do pavilhão e descer a rua do Parque de Exposições rumo ao sambódromo, notei que tudo ao redor estava envolto por uma densa neblina branca. Era como se as brumas da lendária ilha de Avalon tivessem ressurgido e acampado ali naquele lugar, trazendo consigo as bênçãos, o poder, a mágica de Merlin e Morgana. Um misto de prazer e agonia invadiu-me, uma mistura de adrenalina e nervosismo à flor da pele, ganas inquietas de, bem como ‘Rainhas que à noite se maquiam’, fazer lindas ‘bruxarias na avenida’ em forma de dança.

E foi uma noite memorável onde magos, belos faraós, gueixas, samurais, uma mulher do povo Na’vi, Drag Queens e tantos outros corpos/personagens cheios de brilho e swing aquarelaram fantasias desfilando entre templos, portais, pontes, dragões, ônibus prateados e sapatos alados. Em plena avenida, olhava acima do caldeirão e via os suntuosos faraós – os humanos que dançavam escalando uma pirâmide e os alegóricos que repousavam sentados com as mãos pousadas sobre as pernas. E acima destes, as brumas, frias, brancas, densas, abraçando, envolvendo aquela imensa plêiade de corpos que preenchiam a avenida do samba fazendo seu espetáculo, carnavalizando sonhos, risos, cores, desafios, o suor de muito trabalho e a superação de obstáculos.

Mais um ciclo foi concluído e a Imperatriz, que majestosa se veste de vermelho e branco e é aclamada pela carinhosa comunidade da Zona Norte da cidade de Cruz Alta, recebeu mais uma estrela dourada para adornar sua coroa. Memoráveis são os momentos que experimentei junto daquelas estrelas humanas, pessoas brilhantes que formam esta agremiação carnavalesca. Cada uma dessas estrelas soube, a seu modo, cintilar, sorrir, acolher, trabalhar junto, dar a mão, um beijo, um abraço ou somente demonstrar um ímpeto para abraçar, beijar, estar próximo. No vermelho da paixão do carnaval e no branco pacífico das brumas que naquela noite nos envolviam, paira em meu entorno uma saudade sussurrando lembranças lindas ao pé do ouvido, dizendo que sonhos, magias, encantos e afetos são reais quando pessoas se juntam, superam obstáculos e constroem espetáculos para emocionar a outros.

Odailso Berté
Coreógrafo, professor e pesquisador em dança contemporânea
Doutorando em Arte e Cultura Visual - UFG
Mestre em Dança - UFBA
Especialista em Dança - FAP
Licenciado em Filosofia - UPF

25 de fevereiro de 2014

Nem tudo que reluz é ouro - Carnaval 2014

Desde o ano de 2006 tenho participado do Carnaval de Rua de Santo Ângelo/RS como coreógrafo de Comissão de Frente e de 2013 em diante tenho também experimentado a responsabilidade de ser carnavalesco e propositor de tema-enredo. A prazerosa satisfação de fazer parte disso vem da certeza de integrar um processo de criação desafiador e fértil que, mesmo sem tanta tecnologia e certas exuberâncias (vindas de fora), mostra à comunidade santo-angelense um desfile de carnaval inédito e genuinamente missioneiro, feito por nossa gente. É o que tem feito, a meu ver, a Escola de Samba Acadêmicos do Improvizo ao longo desses anos.


Observando e integrando o desfile do Carnaval de Rua de Santo Ângelo de 2014, atitudes de integrantes deste evento bem como as comoções provindas do resultado da apuração que deu à Acadêmicos do Improvizo o título de tetracampeã, me trouxeram instigantes reflexões e questionamentos. Agremiações carnavalescas mais tradicionais, acostumadas ao título de campeã em épocas mais remotas e sem a competitividade de hoje, obviamente tem dificuldade em assimilar derrotas consecutivas. Normal, nós humanos somos assim. As fórmulas antigas de se compor um tema-enredo e consequentemente um desfile de carnaval, nitidamente não vem mais dando certo. Há que se inventar novos jeitos de tecer e tramar os fios que costuram um tema-enredo. Desde a técnica artística usada para uma Comissão de Frente ao galão usado para detalhar as alegorias de uma carro, todos devem estar imbricados de modo a traduzir visualmente o tema-enredo e não a enaltecer a si próprios.

Por ter sido o divisor de águas entre o 1º e o 2º lugares do Carnaval 2014, o quesito Comissão de Frente despertou diferentes interpretações e muitas falas infundadas. Enquanto profissional pós-graduado da área de artes e dança (Especialização, Mestrado e Doutorado), com o devido respeito aos avaliadores vindos em anos passados, percebo que neste ano tivemos para o quesito Comissão de Frente um avaliador diferentemente formado e qualificado para desempenhar tal função. Quem mais que um profissional da área de dança e artes cênicas (ator, dançarino, coreógrafo, professor, integrante de importantes carnavais) para entender de corpo, movimento, expressividade, composição coreográfica, uso de elementos cênicos e adequação de figurinos no contexto do carnaval?

Tenho especial afeto pelo quesito Comissão de Frente, pois foi ele o caminho que me trouxe para o carnaval. Manter nota 10 neste quesito em todos esses anos de carnaval tem sido um trabalho desafiador e prazeroso. Penso que a nota vem como consequência da criação, da sua execução na avenida, da coerência artística e temática e dos pontos de vista com que o avaliador interpreta aquilo que lhe é mostrado, seja na sinopse seja na apresentação. A formação a partir da qual executo as Comissões de Frente que tenho criado ao longo de nove anos em Santo Ângelo vem da dança contemporânea, que não é um conjunto de giros, saltos e passos prontos como em outros estilos de dança ou técnicas artísticas. Mas sim, um modo, um caminho, um jeito de pensar e fazer dança mais aberto àquilo que o corpo, ou seja, a pessoa quer dizer/comunicar por meio de seus gestos e movimentos. Formado neste pensamento e prática de dança, ao criar uma Comissão de Frente, antes de giros, saltos ou outros virtuosismos, me preocupo em como os movimentos traduzem ou estão conectados ao tema a ser contado. Pois, como toda a Escola de Samba, a Comissão de Frente tem algo a ser comunicado. Nessa história a ser contada, saltar por saltar, girar por girar, por mais virtuoso que pareça, não garante coerência e conexão entre tema-enredo e coreografia. Nesse sentido, penso que a técnica (de dança, de teatro ou outras artes) não deve se sobrepor ao que precisa ser dito e traduzido em forma de movimentos, representações, alusões, simbologias, etc. Há que se contar bem uma história com movimentos contextualizados, figurinos característicos e funcionais e o adequado uso de alegoria.

Penso que um avaliador de carnaval não tem a obrigação de conhecer em extrema profundidade todos os temas que cada uma das escolas de samba irá apresentar na avenida. Os avaliadores não são “especialistas em generalidades” e nem têm a função de ler os mesmos livros que eu digo ter lido para criar o tema-enredo e nem saber em pormenores os detalhes da história que eu, enquanto carnavalesco/coreógrafo/compositor/Escola de Samba vou contar na avenida. E aí está a sabedoria do carnaval: enquanto Escola de Samba, Coreógrafo, Carnavalesco, saber contar bem o tema-enredo, traduzir de modo claro e esteticamente bem resolvido a proposta temática. Nas funções do avaliador, com sua experiência, vivência carnavalesca, embasamento e formação profissional, está a missão de ler a sinopse apresentada pela Escola de Samba e perceber se a execução feita durante o desfile é condizente e coerentemente conectada com o descrito. Se a prática performada no desfile condiz, enaltece e está imbricada com o discurso declarado na sinopse, é bem provável que a nota 10 será mantida. Pois, a título de informação, cada Escola de Samba já entra na avenida com nota 10 em todos os quesitos e vai perdendo pontos a depender das falhas e/ou incoerências que pode cometer ao longo do percurso.

Em um desfile de carnaval e em tantas situações de nossas vidas, nem tudo aquilo que brilha é joia rara, nem tudo aquilo que titubeia sofre uma queda e nem tudo que parece mais simples é digno de desprezo. Eu aprecio plumas e paetês, todavia, para além disso, um desfile de carnaval se faz, em grande parte, da coerência entre todos os elementos que o formam. E volto a enfatizar que, o galão e o acetato que decoram um carro, o tecido que estrutura uma fantasia ou a técnica artística que compõe uma Comissão de Frente não devem se sobrepor ao tema-enredo, à história que a Escola de Samba tem que saber contar/cantar/performar/dançar de modo plausível para os avaliadores e para o público.

Que venham muitos carnavais. Que esta festa e espetáculo popular se enraíze cada vez mais nas Missões e forme uma cultura de adesão e compreensão do que ele realmente implica e significa. Talvez assim o olhar da comunidade e a compreensão do público não permaneçam tão ofuscados por brilhos reluzentes e performances virtuosas que por vezes agradam o olhar mas não garantem a coerência artística e temática que deve estruturar um desfile de carnaval.


Odailso Berté
Coreógrafo e Professor de Dança
Doutorando em Arte e Cultura Visual - UFG
Mestre em Dança - UFBA
Especialista em Dança - FAP
Licenciado em Filosofia - UPF    

1 de outubro de 2013

À revolução de Madonna e à pregação de m. feliciano, "show your ass"

Coincidentemente, nos dias em que assisti o filme “Secret Project Revolution” (2013), parceria da cantora Madonna com o fotógrafo Steven Klein, também me deparei com um vídeo de uma pregação onde o pastor e deputado m. feliciano ofende católicos e outra vez desmerece lésbicas e gays. Enquanto o pastor, nesta e em outras pregações, proclama que Deus matou artistas como John Lennon e Mamonas Assassinas, desdenha da confiabilidade da classe artística, condena negros, gays e mulheres e hostiliza católicos, a cantora pop se expressa em defesa de gays, negros, mulheres, artistas e em respeito a diferentes culturas e expressões religiosas.

Além das atrocidades proferidas por feliciano, “Secret Project Revolution” também me remeteu a fatos como a violência da Polícia Militar do Rio de Janeiro que, em 28/09/2013, agrediu violentamente professores/as que manifestavam exigindo melhorias em sua carreira, aos desmandos do STF em julgar e punir os ladrões engravatados do mensalão, à desvalorização dos educadores da rede municipal (que entraram em greve em 24/09/2013) por parte da prefeitura de Goiânia/GO e a tantos casos de agressão, desrespeito e intolerância nos quais facilmente seres humanos discriminam, ferem a dignidade e tiram a vida um do outro. Estas e outras situações estarrecedoras relacionadas ao referido filme me trazem a pergunta (que até parece clichê): Para onde estamos caminhando, queridos compatriotas humanos?
 
Criticada por ser rica, exibicionista, branca, mulher, ingênua, oportunista, etc., e propor reflexões e ações que podem levar a transformações no cenário de intolerância que se espalha pelo mundo, Madonna trás essas críticas para o filme, questionando o fato de, porque sendo ela mulher, loira, artista, não poderia ter atitudes revolucionárias. Em imagens extremamente bem criadas e articuladas e um uso cuidadoso da dança como metáfora, o filme, que prega uma revolução do amor, também é composto por uma narração na voz de Madonna. Ela expressa experiências e percepções vividas ao longo de sua turnê mundial em 2012, sua indignação, críticas que recebeu, sua vontade incessante e crescente de combater as injustiças e de unir mais pessoas nesse projeto que também visa (re)pensar o que é a liberdade de expressão.
No primeiro contato com o filme, o discurso/narração me pareceu tirar o foco das imagens ou querer explicá-las. Percebi mais a necessidade de Madonna falar do que, propriamente, a potência das imagens e da dança em questionar e instigar significados. Outras aproximações possibilitaram perceber afinidades, desencontros e fricções entre texto/fala e imagem/dança. O “Secret Project Revolution” está inserido num projeto maior chamado “Artforfreedom”, onde outros artistas são convocados a se manifestar acerca do que pensam sobre liberdade, preconceito, violência, etc.
 
Ao dizer “sou mulher, sou loira. Eu tenho peitos e bunda e um desejo insaciável de ser notada”, Madonna relembra que quando (na MDNA World Tour - 2012) ficou só de lingerie no palco e mostrou a bunda, alguns gostaram e outros acharam obsceno. Ela complementa dizendo que julgar a compaixão e temer o amor, isso sim é obsceno. Nesse momento do filme, uma voz forte e convocadora proclama: “Show your ass” (mostre sua bunda), o que me remete ao discurso moralista e inescrupuloso de m. feliciano ao dizer que católicos tem o corpo entregue à prostituição e todas as misérias humanas.
Me pergunto o que de fato ele entende por corpo e imagino as atrocidades que viriam na resposta a esta pergunta. Penso se ele tem refletido sobre o termo “prostituição”, principalmente em tempos onde se discute sua legitimação enquanto profissão. E o que seriam “as misérias humanas” a que ele se refere? E porque agora atacar os católicos? Seria receio de perder fieis para o carisma do Papa Francisco? Quão obscenas e desumanas considero as palavras de quem se propõe líder religioso ao passo que condena umas pessoas pela sua cor, raça, identidade, gênero, e imbeciliza outras com discursos moralistas e amedrontadores. Diante de ideias e atitudes assim, resta dizer: “Show your ass”, é menos vergonhoso e menos obsceno.
 
Falando em católicos, é intrigante ver membros de igrejas cristãs pentecostalistas repetindo discursos, condenações e atrocidades que a igreja católica fazia lá na idade média com mais estilo, convenhamos, pois certas performances “pastoricidas” estridentes são um descalabro.  E falando em prostituição, muito mais obsceno do que um corpo que presta serviços sexuais, e cobra por isso, é um corpo que berra e vomita discursos excludentes e discriminatórios atribuindo isso à vontade divina.
Madonna recorda ainda, em seu filme, que Jesus, Buda, Maomé, Moisés, entre outras celebridades religiosas, discursavam e agiam tendo em vista o amor entre as pessoas, sem usar a religião para fazer mal aos outros. Instigante o fato de uma artista pop, taxada de exibicionista, vadia, marqueteira, entre outros atributos, nos recordar dessa máxima religiosa e humanista. Se o corpo é pra louvar a Deus, como prega o pastor, e se Deus é amor e autor de todas as formas de vida, o corpo de quem viola os direitos humanos está longe disso. Penso que se certos líderes religiosos refletissem teologicamente, com sensibilidade e mais cautela intelectual, sobre o texto/poema bíblico da criação, poderiam talvez entender que, se Deus fez mulher e homem como corpos e disse que isso é sua imagem e semelhança, o corpo (com peitos, bundas, outros adereços e variadas cores, gêneros, identidades e orientações sexuais) é imagem divina.
 
Ao elucidar o medo da diferença como algo que leva à intolerância, em seu filme, a santa e pecadora Madonna ainda ironiza, provoca e invoca um discurso acerca do corpo dizendo: “Vem cá, baby, mostre a sua bunda. Mexa pra gente. Faça aquela dança que você faz tão bem, baby”. O convite a mostrar, mexer, dançar, me faz refletir outra vez sobre o que é SER CORPO, a desmistificar pregações imbecilizantes que veem o corpo como um saco de pancadas, como bode expiatório de pecados e louvores inventados, como instrumento submetido aos ditames de discursos e instituições dualistas/espiritualistas que desconsideram sua materialidade, humanidade, sexualidade. Conclamar os diferentes corpos a se amarem e a se importar com o bem comum seria menos obsceno que certos impropérios em forma de pregação.
 
Por Odailso Berté
Doutorando em Arte e Cultura Visual - UFG
Mestre em Dança - UFBA
Licenciado em Filosofia - UPF

28 de agosto de 2013

"Só a bailarina que não tem", ahãm, Cláudia...


Francine Piaia fazendo 'quadradinho de oito' vestida de bailarina
 
Certo dia me deparei com um cartaz, colado num poste, que dizia: “Contrata-se dançarinas (sem experiência)”. Isso me remeteu à correção que recebi de uma pessoa quando eu escrevia uma crítica de dança e chamava as artistas do referido espetáculo de “dançarinas”. A correção se deu no sentido de que eu não poderia chamá-las assim, pois dançarina é quem dança em boates, bandas, programas televisivos... Nessa forma de pensar, o correto, para quem é profissional da dança, seria “bailarina”. [Ahãm, Cláudia, senta lá...].
O cartaz e a correção podem ascender questões pertinentes para se refletir em torno da DANÇA como arte, profissão, área de conhecimento. Uma mácula parece acompanhar a dança e o corpo ao longo dos tempos, aproximando-os do sexo, do desejo, da sensualidade, como se fossem pecados, sujeira, impurezas. Daí, talvez, ainda derivem, no imaginário de muitos/as, as imagens equivocadas de dançarina/o como puta/o, promíscua/o, lasciva/o.
Pensando na história da dança cênica ocidental, o balé, ou a dança clássica, foi a primeira técnica de dança codificada (Eugênio Barba, 1995). Nascido na corte do rei Luís XIV, esta modalidade de dança – e não base para toda a dança – é o que de mais erudito ainda se cultua no campo da produção de dança e na preparação de profissionais de dança. O balé ainda é tomado como referência suprema que determina e até “purifica”, sacraliza o que seria a boa dança, longe de promiscuidade e lascívia. Não à toa este estilo de dança foi e é tomado como instrumento de disciplina e boas maneiras. Curiosamente, foi o único estilo de dança permitido por Hitler, durante o regime nazista.
As imagens da bailarina [princesa, fada, sílfide], ser sobrenatural e esvoaçante, “que não tem pereba, pecado, namorado, sujeira, irmão zarolho, remela, piolho...”, como diz a canção de Edu Lobo e Chico Buarque, contrastam com imagens de dançarinas de funk, de streapers, das dançarinas do Faustão, de quem usa formas de dança como estratégia de atrativo sexual, entre outras. Na imagem acima, a ex-BBB Francine Piaia faz o "quadradinho de oito" vestida de bailarina, uma atitude que pode ferir os sentimentos de quem sacraliza o balé em detrimento do funk e outras danças que evidenciam o erótico, a sexualidade e o prazer. De fato existem diferenças nas funções, ações, danças que esses corpos desempenham. Todavia, me inquietam os preconceitos, os receios, os equívocos em torno dos termos “dança”, “dançarina/o”.
O termo “dançarino/a” surge por volta do século XVIII, provavelmente calcado do termo italiano “ballerino/a” (Antônio Cunha, 1986). Segundo a Classificação Brasileira de Ocupações – CBO, no grupo “artistas da dança” compreende-se bailarinos, dançarinos, coreógrafos, dramaturgos, assistentes, ensaiadores e professores de dança (Carla Morandi, 2010). Suas competências, de acordo com cada função, compreendem concepção/concretização de projetos cênicos de dança, criação de obras coreográficas, realização de apresentações públicas, preparação corporal, pesquisa de movimentos, ensaios e ensino de dança. Sobre a formação e experiência, embora ainda não seja exigência, estas seguem a tendência mundial no campo das artes baseada na formação por meio de curso superior na área.
A dança, vista/pensada/executada como arte, profissão, área de conhecimento, abarca questões e possibilidades artísticas, expressivas, educacionais, de saúde, bem estar e relações sociais. Tratar de dança é tratar de um fenômeno, uma ação cultural que transpõe os limites das conhecidas sistematizações e classificações. A dança está nos palcos, nas academias, nas salas de aula e para além destes espaços. A dança está presente no cotidiano sociocultural, seja como arte, linguagem, forma de comunicação, lazer, entretenimento, área de conhecimento, evento social, elemento de festas, bailes, celebrações, shows e rituais, podendo envolver relações de afeto, prazer, saber e poder.
Interpretando o termo “artista da dança”, penso que os receios em torno do termo “dançarino/a” carregam uma falta de compreensão da abrangência que a dança possui, além de preconceitos classistas/elitistas/puritanos que aumentam os abismos entre as “danças da corte” (eruditas/alta cultura/arte) e as “danças da plebe” (populares/de massa/midiáticas/entretenimento). Elementos de dança perpassam estes diferentes ambientes, compostos por diversos corpos-sujeitos e variados modos de usar/fazer/entender dança. É um equívoco pensar que só podem ser entendidas como DANÇA (boa dança - arte) as danças eruditas, da alta cultura, do sistema das belas artes e também as folclóricas e tradicionais.
As diferentes formas de dança e de uso da dança não devem ser niveladas, nem vistas sob os mesmos ângulos e olhares. Cada estilo de dança e cada profissional da dança merece a devida consideração em relação a sua história, trajetória, formação e experiência. Para quem somente dança balé, penso que o termo que melhor o/a identifica, se assim preferir ser chamado pelo estilo ao qual se dedica, pode ser “bailarino/a”. Para quem dança e faz da DANÇA sua área de atuação, profissão, formação, criação, independente de ser dança clássica, moderna, contemporânea, de salão, de shows, de pole dance, em boates, no teatro ou no programa do Faustão, às favas o receio/preconceito de ser chamado/visto/reconhecido como DANÇARINO/A.

Odailso Berté
Dançarino, coreógrafo e pesquisador em dança contemporânea
Doutorando em Arte e Cultura Visual - UFG
Mestre em Dança - UFBA
Especialista em Dança - FAP
Licenciado em Filosofia - UPF

Imagem capturada aqui.

15 de dezembro de 2012

Madonna, o corpo metáfora (MDNA Tour 2012)

Tanta ou maior que a de 2008, quando a Sticky & Sweet Tour veio ao Brasil, foi minha atual expectativa para (re)ver Madonna em sua MDNA Tour (2012). Hoje ela também faz parte dos afetos – cheios de razões – que movem meus interesses de estudo e pesquisa. Fã e pesquisador se misturam e, por mais que Adorno e Horkheimer pensassem o contrário, o ato eufórico e encantado de experienciar/cantar/dançar/chorar com o show de Madonna não está separado do ato de pensamento e construção de significados. Esse é um momento que elucida o fato de que, no corpo, razão e emoção nunca estão separadas.


O nono dia de dezembro de 2012 foi marcado pelo meu reencontro com a Rainha da música pop, a ‘girl gone wild’ que faz jus em ter o nome de “nossa senhora – Madonna”. Afinal, há que ser muito poderosa para orquestrar um espetáculo de tamanha magnitude, além de cantar (ao vivo) e dançar (eu falei dançar, não passinhos pra lá e pra cá). Bem antes do espetáculo iniciar, um ensaio trouxe Madonna e seus dançarinos ao palco. As imagens artefatos, antes vistas, tornam-se imagens ações que se movem diante dos olhos, criando refrações no corpo todo. Um pensamento/sentimento ingênuo emerge: “Madonna é de verdade”! Tão real e próxima que, como qualquer mortal, precisou se proteger do sol.


O show inicia como um missa. O cenário, uma imponente catedral com direito a monges, gárgulas, sino, turíbulo e ladainha com o nome Madonna. Ao soar uma penitente e sensual voz feminina, dizendo “Oh my God”, a catedral se abre para a entrada de um oratório suspenso que mostra a silhueta de uma mulher ajoelhada, de mãos postas, rezando a oração do ato contrição. Ela levanta, empunha um rifle a quebra os vidros do oratório para cantar “Girl Gone Wild”. Sim, é a própria Madonna, a santa que empunha um rifle, ao passo que os monges se despem e dançam sobre sapatos de salto alto. Inversões, provocações, subversões... Dicas e picardias para os conservadores religiosos (católicos, evangélicos e do diabo a quatro) e demais simpatizantes que abominam a homoafetividade. São sinais de nossa senhora – Madonna... Interpreto e obedeço, piedosamente. Amém!


Já no terceiro bloco do show, Madonna interpela o olhar do espectador perguntando: “What are you looking at?” Sugerindo questões referentes a corpo, gesto, imagem, pose, comportamento, a performance do sucesso “Vogue” é genialmente articulada e desfilada por modelos/looks que remetem a diferentes gêneros, épocas, personagens, cenários. A sequência se dá com o mashup, pra lá de sensacional, de “Candy Shop” com “Erótica” que ambienta um ousado e polido cabaré onde corpos trocam gracejos, prazeres, toques e afetos. Com “Human Nature”, Madonna se relaciona consigo mesma diante de espelhos e com mãos que buscam tocá-la, aludindo a temas como identidade, desejo, fetiche, objetificação, sexualidade. Ela encerra este momento se despindo e proferindo um caloroso e emocionado discurso em prol das mulheres de todo o mundo.


Outro destaque especial merece a dança no show de Madonna. Dançarina profissional, quase graduada em dança pela University of Michigan, ela também vivenciou a técnica de dança moderna de Martha Graham, uma das fundadoras dessa modalidade a nível mundial. Com toda essa bagagem, é de se esperar e comprovar que em seu show, Madonna e seus dançarinos não fazem da dança uma mera ilustração para a letra das músicas. Trata-se sim, de configurações coreográficas que ora convergem ora divergem com a música. São estruturas de movimento que adensam as propostas estéticas do show e propõem diferentes formas de ver, analisar, sentir, perceber o espetáculo. O corpo não é apenas um objeto virtuoso da arte, mas um corpomídia que constrói informações, imagens e metáforas para se comunicar com os demais corpos. É impressionante os modos como Madonna não simula o ato de dançar em função do ato de cantar. Pude vê-la, a menos de três metros de distância, no auge dos seus 54 anos, dando saltos, fazendo rolamentos, giros e sequências efusivas de movimento. É simplesmente... Uau! Ela acompanha, equiparadamente, os dançarinos mais jovens e ainda canta e toca. Que estrela!


Entre canções, imagens e coreografias, a ópera pop de Madonna desliza e adentra por catedral, quarto de hotel, combate, lutas, banda marcial, balizas e líderes de torcida, luau basco, cabaré, celebração mística e festiva, críticas sociais, políticas e religiosas. Uma cadência impressionante, uma tecnologia espetacular, performances arrebatadoras, um produto muito bem amarrado estética, imagética e conceitualmente que confirma a arte de Madonna como uma potência cultural e econômica consolidada e abrangente.


Mística e erótica, razão e emoção não encontram barreiras entre si quando o corpo se relaciona com algo assim. Vida longa à Rainha do pop. Que no alto dos seus sessenta anos possamos ainda ver Madonna interpelando o mundo com suas criações e, como ela mesma diz, fazendo de seu corpo uma metáfora para provocar.

Odailso Berté
Coreógrafo e dançarino
Doutorando em Arte e Cultura Visual
Mestre em Dança
Licenciado em Filosofia

Fotos de Odailso Berté