Francine Piaia fazendo 'quadradinho de oito' vestida de bailarina
Certo dia me deparei
com um cartaz, colado num poste, que dizia: “Contrata-se dançarinas (sem
experiência)”. Isso me remeteu à correção que recebi de uma pessoa quando eu
escrevia uma crítica de dança e chamava as artistas do referido espetáculo de “dançarinas”.
A correção se deu no sentido de que eu não poderia chamá-las assim, pois
dançarina é quem dança em boates, bandas, programas televisivos... Nessa forma
de pensar, o correto, para quem é profissional da dança, seria “bailarina”. [Ahãm,
Cláudia, senta lá...].
O cartaz e a correção podem
ascender questões pertinentes para se refletir em torno da DANÇA como arte,
profissão, área de conhecimento. Uma mácula parece acompanhar a dança e o corpo
ao longo dos tempos, aproximando-os do sexo, do desejo, da sensualidade, como
se fossem pecados, sujeira, impurezas. Daí, talvez, ainda derivem, no
imaginário de muitos/as, as imagens equivocadas de dançarina/o como puta/o,
promíscua/o, lasciva/o.
Pensando na história da
dança cênica ocidental, o balé, ou a dança clássica, foi a primeira técnica de
dança codificada (Eugênio Barba, 1995). Nascido na corte do rei Luís XIV, esta
modalidade de dança – e não base para toda a dança – é o que de mais erudito
ainda se cultua no campo da produção de dança e na preparação de profissionais
de dança. O balé ainda é tomado como referência suprema que determina e até “purifica”,
sacraliza o que seria a boa dança, longe de promiscuidade e lascívia. Não à toa
este estilo de dança foi e é tomado como instrumento de disciplina e boas
maneiras. Curiosamente, foi o único estilo de dança permitido por Hitler,
durante o regime nazista.
As imagens da bailarina [princesa,
fada, sílfide], ser sobrenatural e esvoaçante, “que não tem pereba, pecado,
namorado, sujeira, irmão zarolho, remela, piolho...”, como diz a canção de Edu
Lobo e Chico Buarque, contrastam com imagens de dançarinas de funk,
de streapers, das dançarinas do Faustão, de quem usa formas de dança como
estratégia de atrativo sexual, entre outras. Na imagem acima, a ex-BBB Francine Piaia faz o "quadradinho de oito" vestida de bailarina, uma atitude que pode ferir os sentimentos de quem sacraliza o balé em detrimento do funk e outras danças que evidenciam o erótico, a sexualidade e o prazer. De fato existem diferenças nas
funções, ações, danças que esses corpos desempenham. Todavia, me inquietam os
preconceitos, os receios, os equívocos em torno dos termos “dança”, “dançarina/o”.
O termo “dançarino/a” surge
por volta do século XVIII, provavelmente calcado do termo italiano “ballerino/a”
(Antônio Cunha, 1986). Segundo a Classificação Brasileira de Ocupações – CBO, no grupo “artistas
da dança” compreende-se bailarinos, dançarinos, coreógrafos, dramaturgos,
assistentes, ensaiadores e professores de dança (Carla Morandi, 2010). Suas
competências, de acordo com cada função, compreendem concepção/concretização de
projetos cênicos de dança, criação de obras coreográficas, realização de apresentações
públicas, preparação corporal, pesquisa de movimentos, ensaios e ensino de
dança. Sobre a formação e experiência, embora ainda não seja exigência, estas seguem
a tendência mundial no campo das artes baseada na formação por meio de curso superior
na área.
A dança, vista/pensada/executada
como arte, profissão, área de conhecimento, abarca questões e possibilidades
artísticas, expressivas, educacionais, de saúde, bem estar e relações sociais. Tratar
de dança é tratar de um fenômeno, uma ação cultural que transpõe os limites das
conhecidas sistematizações e classificações. A dança está nos palcos, nas
academias, nas salas de aula e para além destes espaços. A dança está presente
no cotidiano sociocultural, seja como arte, linguagem, forma de comunicação,
lazer, entretenimento, área de conhecimento, evento social, elemento de festas,
bailes, celebrações, shows e rituais, podendo envolver relações de afeto, prazer,
saber e poder.
Interpretando o termo “artista
da dança”, penso que os receios em torno do termo “dançarino/a” carregam uma
falta de compreensão da abrangência que a dança possui, além de preconceitos classistas/elitistas/puritanos
que aumentam os abismos entre as “danças da corte” (eruditas/alta cultura/arte)
e as “danças da plebe” (populares/de massa/midiáticas/entretenimento).
Elementos de dança perpassam estes diferentes ambientes, compostos por diversos
corpos-sujeitos e variados modos de usar/fazer/entender dança. É um equívoco
pensar que só podem ser entendidas como DANÇA (boa dança - arte) as danças eruditas, da alta cultura,
do sistema das belas artes e também as folclóricas e tradicionais.
As diferentes formas de
dança e de uso da dança não devem ser niveladas, nem vistas sob os mesmos
ângulos e olhares. Cada estilo de dança e cada profissional da dança merece a devida consideração em
relação a sua história, trajetória, formação e experiência. Para quem somente dança balé,
penso que o termo que melhor o/a identifica, se assim preferir ser chamado pelo
estilo ao qual se dedica, pode ser “bailarino/a”. Para quem dança e faz da DANÇA
sua área de atuação, profissão, formação, criação, independente de ser dança
clássica, moderna, contemporânea, de salão, de shows, de pole dance, em boates,
no teatro ou no programa do Faustão, às favas o receio/preconceito de ser chamado/visto/reconhecido
como DANÇARINO/A.
Odailso Berté
Dançarino, coreógrafo e pesquisador em dança contemporânea
Doutorando em Arte e Cultura Visual - UFG
Mestre em Dança - UFBA
Especialista em Dança - FAP
Licenciado em Filosofia - UPF
Imagem capturada aqui.
Odailso Berté
Dançarino, coreógrafo e pesquisador em dança contemporânea
Doutorando em Arte e Cultura Visual - UFG
Mestre em Dança - UFBA
Especialista em Dança - FAP
Licenciado em Filosofia - UPF
Imagem capturada aqui.
Eis que danço!
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