22 de setembro de 2012

"Rubro": quando a dança enrubesce nossos sentidos


Aquilo que vemos/percebemos por meio da estesia – nossa capacidade de sentir e criar sentidos/significados – nos interpela, enquanto corpos, a criar discursos, imagens, interpretações. Cada corpo vê, percebe e interpreta a partir do seu repertório de ideias e experiências. Por vezes, os modos de cada um interpretar se encontram, outras vezes se distanciam, o que é bom e até desejável. Quando um corpo cria algo, nesse caso, uma dança e a mostra, certamente tem um intento/pergunta/motivo que o leva à criação. Todavia, a compreensão de que o público deve ‘adivinhar’ o que o artista quis ‘realmente’ dizer com sua obra é algo questionável.

Ver/pensar/fazer arte na contemporaneidade pode estar próximo da ideia de relação e diálogos entre artista e público. Diálogos onde a proposição artística se mostra aberta à interpretação. Desse modo percebi a coreografia “Rubro” (2012), do Núcleo de Dança Coletivo 22, em parceria com o Curso de Licenciatura em Dança da Universidade Federal de Goiás, apresentada nos dias 18 e 19 de setembro de 2012, no Centro Cultural da UFG, em Goiânia. Acerca desta, busco tecer em palavras alguns sentidos como forma de crítica e apreciação.

Gotas, pingos, líquido... Uma dança que escorre sem tropeços, sotaques ou obstáculos à percepção. Como propõe António Damásio (2010), pensamos por meio de imagens vistas, recordadas, criadas. Nossas ideias são imagens. Nesse sentido, vejo “Rubro” como uma coreografia que não passa pelo olhar sem umedecer o corpo de imagens/ideias. Entrecruzando elementos da natureza, do ciclo corporal feminino e da mitologia africana, a coreógrafa Renata Lima e o intérprete Sacha Witkowiski criam peculiares movimentos de dança. Estes, associados ao figurino, aos objetos cênicos, à música e à projeção de imagens, instauram uma coreografia que liga sangue e barro através de uma versatilidade plástica, sutil e envolvente.

Sangue e barro são aproximados pela cor avermelhada e pelos modos/imagens como podem ser referidos ao corpo, à vida, à morte, à fertilidade. É interpeladora a tentativa artística, tanto da coreógrafa como do intérprete, de moldar num corpo masculino elementos do ciclo corporal feminino. A exuberância das formas/movimentos corporais do dançarino sugere ver seios em seu peito, gravidez em seu abdome, menstruação em seu falo. São transmutações, imagens, gestos que a versatilidade contemporânea da dança constrói por meio de uma estética que seduz a compreensão e questiona a percepção.


Não me contenho à evocação de Elisa Lucinda, em seu poema ‘Aviso da Lua que Menstrua’, ao dizer que “há que se ter cautela com esta gente que menstrua”. Como faz a poetiza, também a coreografia parece sugerir: “Imagine uma cachoeira às avessas: cada ato que faz, o corpo confessa”. Bricolando ciclos e corpos femininos e masculinos, entrecruzando avessos dos gêneros, “Rubro” me parece sugerir a imagem de um homem que menstrua, que entre gaiola e saia (re)inventa prisão e vestimenta, que desfila exibindo membros e palavras, falos e falas, que acalenta atitudes (pa/ma)ternas sem titubear entre ser ele ou ela.

Os sangramentos que a coreografia sugere também denotam alusões a perdas, desencontros, ausências, saudades. “Cortei o dedo quando você se foi...” diz uma canção que compõe a trilha, possibilitando-nos pensar/imaginar acerca de que o corpo sofre, se machuca, sangra quando afastado daquilo ou daquele/a que lhe é importante, vital. Os cortes afetivos também sangram e tem seu tempo/espaço para a cicatrização.

Nesse diálogo entre quem assiste/percebe a dança e quem dança, não entendo imagem como representação. Como já dito, entendo imagem como ideia. Se quisermos usar o termo representação, talvez seja importante não entendermos que a dança transmite ou seja uma representação pronta. Mas sim, dança como uma forma de ação/pensamento do corpo (KATZ, 2005) que possibilita, a quem com ela se relaciona, a criação de representações, aqui entendidas como interpretações. Penso que “Rubro” articula com picardia e sensatez esse modo de ver/pensar/fazer dança.

Ao final, na saída do espaço cênico convencional, a coreografia rompe com este espaço. O corpo espectador, que pode se sentir fazendo parte desse espaço ampliado, tem a memória abraçada pela dança que parece querer ir embora com ele. O corpo dançarino, rubro de barro/sangue, como que evocando imagens de morte e vida, nos toca mais uma vez, beija-nos o olhar e enrubesce-nos os sentidos.

Odailso Berté
Coreógrafo, dançarino, educador e pesquisador
Doutorando em Arte e Cultura Visual – UFG
Mestre em Dança – UFBA
Especialista em Dança – FAP
Licenciado em Filosofia – UPF
Fotos de Odailso Berté 

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