4 de novembro de 2012

Entre Pina Bausch e Madonna, uma dança contemPOPrânea

Você já ouviu expressões do tipo: A dança... “Vem lá de dentro”... “É um dom divino”... “Brota da alma”... “É a expressão do sentimento”... Ou... “É coisa do capeta”? Ingênuas ou equivocadas, estas são formas como alguns veem e entendem a dança. Lembra do filme “Footloose” de 1984? Ele narra um fato curioso, a proibição da dança numa cidade. O reverendo de uma igreja cristã busca impedir o movimento, a liberdade, a expressão do corpo, do “pé solto – footloose”, como diz o título. Essa história é antiga e real. Dança e corpo foram, por muito tempo e ainda hoje, associados à sensualidade, ao sexo, ao pecado, ao demônio. A alma, o espírito, a mente, o pensamento, a teoria, foram erroneamente entendidos como superiores e separados do corpo, do afeto, do prazer, dos sentimentos, da prática.

Kevin Bacon em "Footloose" (1984)

Em “Footloose”, a rebeldia de Ren McCormick (Kevin Bacon) mostra-se no seu corpo: em seus modos de se mover, dançar, falar, se comunicar com os corpos submetidos ao conservadorismo e de enfrentar os corpos conservadores. Quando um pintor faz sua obra, o quadro que ele cria é um objeto externo ao seu corpo. Já um dançarino, quando faz sua obra, a dança, esta não está separada do seu corpo, ela é o seu corpo. Nesse sentido, podemos entender que o corpo é o lugar e o sujeito da dança, ou ainda, que dança é corpo.

Na dança contemporânea nem sempre o coreógrafo cria e os dançarinos repetem. Os modos de configurar a coreografia podem ser compartilhados e misturados com várias outras formas e técnicas artísticas. Ações como andar, correr, sorrir, falar, etc., podem ser vistas no palco, criando um estilo de dança que, muitas vezes, borra as fronteiras entre a arte e a vida cotidiana. Entre os tantos artistas, nacionais e internacionais, destaco o diferenciado trabalho da coreógrafa alemã Pina Bausch (1940-2009), recentemente homenageada pelo cineasta Wim Wenders com o filme “Pina” (2011) e que já tinha aparecido em “Fale com Ela” (2002) de Pedro Almodóvar e “E La Nave Va” (1983) de Federico Fellini. O modo de Pina coreografar era surpreendente. Ela fazia perguntas aos seus dançarinos e eles deveriam respondê-las com movimentos, palavras, gestos relacionados às suas experiências vividas. Com as criações de seus dançarinos Pina organizava as coreografias e espetáculos.

Espetáculo "Bamboo Blues" (2007) de Pina Bausch. Foto de Jong-Duk Woo.

Com esses modos de pensar-fazer dança tem sido possível compreender que o corpo não é uma máquina, a prisão da alma, o lugar do pecado ou somente um repetidor de passos. Mas sim, que o corpo pensa e pode organizar e executar a dança a partir das suas experiências. Pensar é uma ação do corpo. Próximo do que diz a crítica de dança Helena Katz, a dança pode ser compreendida como pensamento do corpo. Ou seja, quando o corpo dança, está pensando/sentindo/comunicando ao mesmo tempo.

Dança é arte e uma área de conhecimento/criação/pesquisa, um curso presente em várias universidades do Brasil e do mundo. Mas sem se restringir a isso, a dança está também em festas, boates, videoclipes, shows, filmes. Entendida como arte ou como entretenimento, dentro dos padrões estéticos tradicionais ou dos padrões da cultura de massa, trata-se de dança e de corpos que dançam. Não vejo maior ou menor valor na dança de um espetáculo de Pina Bausch ou na dança de um show de Madonna... Entre um corpo que assiste uma coreografia de Pina e outro corpo que sua dançando na boate ao som de Madonna.

Coreografia de "Girl Gone Wild" - MDNA Tour (2012). Foto de Rêmulo Brandão.

Demonizar Madonna como cantora de música pop – cultura de massa destinada aos prazeres do corpo e sacralizar Pina Bausch como coreógrafa de dança contemporânea – arte destinada à contemplação mental/espiritual, são atitudes equivocadas, mas muito difundidas. Madonna e Pina Bausch tiveram contato direto com a técnica de dança moderna da coreógrafa norte-americana Martha Graham (1894-1991) em NY. Nos diferentes trabalhos das artistas percebe-se o destaque do corpo, da dança e de um conjunto cênico produzido cuidadosamente. Os chamados ‘erudito’ e ‘popular’ se misturam de muitas maneiras no cotidiano das pessoas, nos mais diferentes modos como nós curtimos, consumimos, usamos, aprendemos, reinventamos ou repudiamos danças, imagens, produtos, roupas, músicas, etc.

As proibições, demonizações, sacralizações e separações já não dão conta dessa profusão contempoprânea. A neurociência tem mostrado que razão e emoção são funções do corpo e que elas operam juntas, sempre. Compreendendo que somos corpos ‘sentipensantes’, busco ver-pensar-fazer uma dança contempoprânea: que é “footloose”, dos pés soltos, do corpo livre, indomável, criativo... Que borra fronteiras, separações, preconceitos... Que está misturada com a vida cotidiana, com os afetos, experiências, prazeres, desejos, sentimentos e pensamentos dos corpos.

Odailso Berté
Coreógrafo e pesquisador em Dança Contemporânea
Doutorando em Arte e Cultura Visual - UFG
Mestre em Dança - UFBA
Especialista em Dança - FAP
Licenciado em Filosofia - UPF

Imagens captutadas aqui, aqui e aqui. 

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