Observando e integrando o
desfile do Carnaval de Rua de Santo Ângelo de 2014, atitudes de integrantes
deste evento bem como as comoções provindas do resultado da apuração que deu à
Acadêmicos do Improvizo o título de tetracampeã, me trouxeram instigantes
reflexões e questionamentos. Agremiações carnavalescas mais tradicionais,
acostumadas ao título de campeã em épocas mais remotas e sem a competitividade de
hoje, obviamente tem dificuldade em assimilar derrotas consecutivas. Normal,
nós humanos somos assim. As fórmulas antigas de se compor um tema-enredo e
consequentemente um desfile de carnaval, nitidamente não vem mais dando certo.
Há que se inventar novos jeitos de tecer e tramar os fios que costuram um
tema-enredo. Desde a técnica artística usada para uma Comissão de Frente ao galão usado
para detalhar as alegorias de uma carro, todos devem estar imbricados de modo a
traduzir visualmente o tema-enredo e não a enaltecer a si próprios.
Por ter sido o divisor de
águas entre o 1º e o 2º lugares do Carnaval 2014, o quesito Comissão de Frente despertou
diferentes interpretações e muitas falas infundadas. Enquanto profissional pós-graduado
da área de artes e dança (Especialização, Mestrado e Doutorado), com o devido
respeito aos avaliadores vindos em anos passados, percebo que neste ano tivemos
para o quesito Comissão de Frente um avaliador diferentemente formado e qualificado
para desempenhar tal função. Quem mais que um profissional da área de dança e
artes cênicas (ator, dançarino, coreógrafo, professor, integrante de importantes carnavais) para entender de corpo,
movimento, expressividade, composição coreográfica, uso de elementos cênicos e adequação de
figurinos no contexto do carnaval?
Tenho especial afeto pelo
quesito Comissão de Frente, pois foi ele o caminho que me trouxe para o carnaval.
Manter nota 10 neste quesito em todos esses anos de carnaval tem sido um
trabalho desafiador e prazeroso. Penso que a nota vem como consequência da
criação, da sua execução na avenida, da coerência artística e temática e dos
pontos de vista com que o avaliador interpreta aquilo que lhe é mostrado,
seja na sinopse seja na apresentação. A formação a partir da qual executo as
Comissões de Frente que tenho criado ao longo de nove anos em Santo Ângelo vem
da dança contemporânea, que não é um conjunto de giros, saltos e passos prontos como em outros estilos de dança ou técnicas artísticas. Mas sim, um modo, um
caminho, um jeito de pensar e fazer dança mais aberto àquilo que o corpo, ou seja, a
pessoa quer dizer/comunicar por meio de seus gestos e movimentos. Formado neste
pensamento e prática de dança, ao criar uma Comissão de Frente, antes de giros,
saltos ou outros virtuosismos, me preocupo em como os movimentos
traduzem ou estão conectados ao tema a ser contado. Pois, como toda a Escola de Samba, a Comissão de Frente
tem algo a ser comunicado. Nessa história a ser contada, saltar por saltar,
girar por girar, por mais virtuoso que pareça, não garante coerência e conexão
entre tema-enredo e coreografia. Nesse sentido, penso que a técnica (de dança, de teatro ou outras artes) não deve se
sobrepor ao que precisa ser dito e traduzido em forma de movimentos,
representações, alusões, simbologias, etc. Há que se contar bem uma história
com movimentos contextualizados, figurinos característicos e funcionais e o
adequado uso de alegoria.
Penso que um avaliador de
carnaval não tem a obrigação de conhecer em extrema profundidade todos os temas
que cada uma das escolas de samba irá apresentar na avenida. Os avaliadores não
são “especialistas em generalidades” e nem têm a função de ler os mesmos livros
que eu digo ter lido para criar o tema-enredo e nem saber em pormenores os detalhes da história que eu,
enquanto carnavalesco/coreógrafo/compositor/Escola de Samba vou contar na
avenida. E aí está a sabedoria do carnaval: enquanto Escola de Samba,
Coreógrafo, Carnavalesco, saber contar bem o tema-enredo, traduzir
de modo claro e esteticamente bem resolvido a proposta temática. Nas funções do
avaliador, com sua experiência, vivência carnavalesca, embasamento e formação profissional, está a
missão de ler a sinopse apresentada pela Escola de Samba e perceber se a
execução feita durante o desfile é condizente e coerentemente conectada com o
descrito. Se a prática performada no desfile condiz, enaltece e está imbricada
com o discurso declarado na sinopse, é bem provável que a nota 10 será mantida.
Pois, a título de informação, cada Escola de Samba já entra na avenida com nota
10 em todos os quesitos e vai perdendo pontos a depender das falhas e/ou
incoerências que pode cometer ao longo do percurso.
Em um desfile de carnaval e
em tantas situações de nossas vidas, nem tudo aquilo que brilha é joia rara, nem
tudo aquilo que titubeia sofre uma queda e nem tudo que parece mais simples é
digno de desprezo. Eu aprecio plumas e paetês, todavia, para além disso, um
desfile de carnaval se faz, em grande parte, da coerência entre todos os
elementos que o formam. E volto a enfatizar que, o galão e o acetato que decoram
um carro, o tecido que estrutura uma fantasia ou a técnica artística que compõe
uma Comissão de Frente não devem se sobrepor ao
tema-enredo, à história que a Escola de Samba tem que saber contar/cantar/performar/dançar
de modo plausível para os avaliadores e para o público.
Que venham muitos
carnavais. Que esta festa e espetáculo popular se enraíze cada vez mais nas
Missões e forme uma cultura de adesão e compreensão do que ele realmente
implica e significa. Talvez assim o olhar da comunidade e a compreensão do
público não permaneçam tão ofuscados por brilhos reluzentes e performances virtuosas
que por vezes agradam o olhar mas não garantem a coerência artística e temática
que deve estruturar um desfile de carnaval.Odailso Berté
Coreógrafo e Professor de Dança
Doutorando em Arte e Cultura Visual - UFG
Mestre em Dança - UFBA
Especialista em Dança - FAP
Licenciado em Filosofia - UPF