Cena do filme Pina (2011), de Wim Wenders. |
Frame do vídeo tutorial da coreografia "Seja patriota". |
Hoje duas imagens de dança turvaram-me o olhar: o filme Pina (2011), de Wim Wenders, exibido pelo canal Curta!, e o vídeo tutorial que ensina os passos da coreografia "Seja patriota", postado no facebook por um grupo que se intitula "Consciência patriótica". Não vou descrever aqui todas as sensações que tive nesses dois momentos, apenas digo que foi uma passagem de prazer à agonia, respectivamente. E perguntas brotaram-me no corpo: como pode a dança prestar-se a propostas tão distintas? Isso faz parte de seu potencial polimorfo? Qual a necessidade de dançar nesses tempos em que a corrupção vem mostrando suas/seus caras em nosso país? O que pode a dança em meio a tudo isso?
Lembra-nos a crítica de dança Helena Katz, e já o sabiam tantos dançarinos e coreógrafos, que A DANÇA É CORPO. Diferente de outros artistas que geram produtos/obras externos ao corpo (quadros, esculturas, músicas, textos, filmes), a obra de dança não existe, concretamente, fora do corpo que dança. A dança se dá em ato, no momento em que o corpo dança. Quando o corpo para de dançar, a obra-dança também para. Obviamente, permanecem sensações, ideias, afetos, no corpo que dança e no corpo que assiste. Mas a obra artística - dança - existe enquanto o corpo dança, não fora ou independente dele. No caso dos dois artefatos aqui comentados (filme e vídeo), temos um registro da dança, ou a geração de outro tipo de obra/artefato a partir da dança: um filme e um vídeo.
Diz o filósofo existencialista Merleau-Ponty que NÓS SOMOS CORPO e não apenas temos um corpo como temos casas, discos, livros, carros, pratos etc. Corpo não é coisa, é ser - eu - você - nós. Se a dança é corpo e nós somos corpo, então a dança é o que nós somos - nós somos a nossa dança. Aquilo que dançamos (ideias, sensações, músicas, imagens, temas, histórias...), faz parte do que somos, do que nos constitui como seres-corpos humanos. As danças que admiramos, cultivamos e que dançamos dizem muito de nós. Mas o que o filme Pina e a coreografia "Seja patriota" tem a ver com isso? Pensemos...
Pina Bausch (1940-2009) foi uma coreógrafa que, em dado momento de sua trajetória artística, passou a "coreografar" de uma maneira diferente da tradicional: ela não criava a dança e passava para os dançarinos repetirem até decorar. Pina fazia perguntas que, por sua vez, faziam os dançarinos pensar em suas historias de vida. A resposta a essas perguntas eram em forma de movimentos, gestos, ações, pequenas falas. Pina dizia: "não me importa como o corpo se move, mas o que move o corpo". Ela se importava com as experiências de vida dos corpos e como elas podiam mobilizar a dança deles. Os corpos/dançarinos de Pina dançavam aquilo que eles eram.
Na coreografia "Seja patriota", são executados passos de dança bastante conhecidos, vistos em muitas outras danças. Talvez, para alguns, esses passos podem ser mais bonitos e prazerosos do que os movimentos da dança de Pina Bausch (não muito comuns e até difíceis de serem aprendidos e repetidos, porque eram sempre inéditos, configurados com exclusividade em cada novo processo criativo). "Seja patriota" é uma coreografia - conjunto de passos, vistos em muitas outras danças, que podem ser usados para transmitir qualquer coisa, tudo ou nada ao mesmo tempo. É um conjunto de movimentos que servem apenas como veículo de transmissão de uma mensagem pronta e predeterminada. Aí estão corpos tomados como coisa/instrumento/veículo, sobre os quais pesa uma música, uma letra, uma ideologia que esmaga a dança e faz dessa arte um mero panfleto de politicagem que: incita o ódio e o combate à corrupção apenas de um partido político; cega os corpos para não verem a corrupção de tantos outros partidos, especialmente daqueles que promovem e incentivam essa mesma "dancinha patriótica".
Esta é uma situação em que a dança se torna um mero instrumento para o velho ditado: "a melhor defesa é o ataque". Atacar a corrupção do outro para esconder a minha. Um caso em que os corpos enfileirados, repetindo os mesmos movimentos, ao mesmo tempo, encarnam aquela musiquinha: "marcha soldado, cabeça de papel". Impõe-se aos corpos uma ideologia nefasta (classista, racista, homofóbica, sexista) e os corpos a confirmam na medida que a incorporam e passam a viver de acordo com ela. Ao repetir a coreografia pseudopatriótica (pois é um falso patriota aquele que diz combater a corrupção atacando apenas uma parte dela e escondendo a sua), os corpos se moldam a esse tipo de ideia e passam propagá-la e comunicá-la para contagiar outros corpos.
NOSSA DANÇA É O QUE NÓS SOMOS! Ao dançar a ideologia pseudopatriótica os corpos dançam aquilo que são, ou seja, as ideias que lhes foram impostas e que eles incorporaram. Os corpos dançam aquilo que compõem sua história, sua vida, sua forma de ser. Nessa ótica, tanto os corpos da dança de Pina Bausch como os corpos da dança pseudopatriótica dançam as suas experiências, aquilo que vivem, que aprenderam ou que lhes foi imposto e assimilaram de modo acrítico. Para não pensarmos que tudo é farinha do mesmo saco, algumas diferenças gritantes: os passos da dança de Pina Bausch não são facilmente reconhecidos, pois eram criados por cada um dos dançarinos, de acordo com as experiências que recordavam através das perguntas. Ou seja, eram passos - que prefiro chamar de movimentos (pois passo se restringe aos pés e movimento pode referir o corpo todo) - que nasciam sempre novos. Já os passos da dancinha pseudopatriótica, são facilmente reconhecidos, não criados em conexão com experiências de vida dos corpos que os dançam, mas ajuntados aleatoriamente e repetidos para dizer qualquer coisa desconectada deles. O que garante o significado desses passos de dança não são eles próprios ou a relação dos dançarinos e do público com eles, mas a ideológica letra da música que essa dança tenta ilustrar. Uma dança-ilustração da ideologia incorporada e confirmada pelos corpos.
Enquanto a dança de Pina Bausch (e muitas outras formas de dança) convida os corpos que assistem a construir diferentes significados para os movimentos que os dançarinos criam, a dancinha pseudopatriótica impõem, aos corpos que a dançam e aos que a assistem, um único significado predeterminado. Este significado, ditado pela letra da música, incita o ódio entre os corpos e propõem um falso combate à corrupção, olhando apenas para uma faceta do problema e cegando os corpos de perceberem a conjuntura da atual situação do nosso país.
Olho para uma das últimas cenas do filme Pina, em que uma dançarina usa uma pá para jogar terra sobre a outra que dança no chão... Apesar de estarem tentando enterrá-la, ela não desiste de dançar, segue movendo-se toda empoeirada. A terra entra nos cabelos, nos olhos, nas orelhas, mas ela não sede. Ela dança, dança, dança, pois do contrário, se parasse, estaria perdida, liquidada, enterrada. Essa é uma das máximas de Pina Bausch que encerra o referido filme: "dance, dance, dance, do contrário estaremos perdidos". Assim, também quero encerrar esta pequena reflexão no sentido de seguirmos dançando nossas experiências, aquilo que nos constitui, a nossa relação com os outros e com o mundo.
Façamos com nossas danças, também uma espécie de espelho para (re)conhecermos constantemente aquilo que somos, aquilo em que acreditamos, que defendemos e que, portanto nos constitui. Não façamos da dança um panfleto ilustrativo de ideologias perversas, mas uma forma do corpo (re)organizar e dizer dos modos como se relaciona com o mundo. Penso ser muito mais patriótica, democrática, amante e defensora do seu país a dança que possibilita aos corpos pensarem em si, nos outros e no mundo; a construir diferentes significados e não engolir significados únicos e prontos. Acredito, faço e luto por danças que possibilitem aos corpos serem autônomos e não autômatos.
Odailso Berté
Doutor em Arte e Cultura Visual (UFG)
Mestre em Dança (UFBA)
Especialista em Dança (UNESPAR)
Licenciado em Filosofia (UPF)
Coreógrafo e Professor de Dança