10 de julho de 2012

Ser cult, piegas, pop, brega ou ... O que importa?

Há dias algumas imagens e falas me interpelam, atravessando (des)respeitosamente meus modos de ver, pensar e sentir...


A primeira é a bela imagem de Julianne Moore vestida de noiva no filme "As Horas". A fotografia aparece nas mãos de seu filho Richard que, já adulto e convalescente pelo HIV, contempla em prantos a mãe em trajes matrimoniais, o que, em relação à sensação de aprisionamento que ela vivia, também representava uma mortalha. Tal imagem mistura, no mesmo branco da veste, tanto a pureza da noiva fiel e submissa quanto a morte que essa relação significava para a personagem. Diante da foto, Richard opta pelo suicídio, pois o passar das horas o fatigava, de modo que morrer seria libertar-se.


A segunda é a imagem de Madonna em seu recente show, da "MDNA Tour" (2012), em Berlin, chorando durante a performance "Like a Virgin". Desde que me lembro da cantora, e isso é desde a infância,  não recordo de qualquer comentário a respeito de Madonna chorar. Quando penso na primeira performance desta música, vejo uma garota ousada vestida de noiva, rolando no chão e engatinhando, cantando de modo libidinoso. Hoje, às vésperas dos seus 54 anos, vejo uma mulher forte, com uma carreira meteórica de quase 30 anos, que leva tatuado às costas o dizer "no fear" e que derrama lágrimas ao cantar dolorosamente a mesma canção. A tensão aumenta com a entrada de um dançarino que veste nela um corpete e o aperta comprimindo fortemente sua cintura. Porém ela precisa continuar cantando sobre a donzela tocada pela primeira vez.


A imagem que complementa esta tríade é da atriz Emma Stone encarnando a personagem Gwen Stacy no filme "O Espetacular Homem-Aranha" (2012). Numa cena que lembra tantos outros filmes, entre muitos guarda-chuvas sob um temporal, a personagem marcha para o funeral de seu pai. Esta imagem resume para mim toda ternura e poesia que permeia a nova versão do herói aracnídeo. A história se centra nos dramas afetivos dele: a perda dos pais e do tio que o criou, a paixão por Gwen, o conforto maternal de sua tia May, a construção de sua identidade. A mim o filme soa como uma bela imagem/metáfora da indissociabilidade natureza/cultura que conforma um corpo em crescimento, transformações, adaptação e descobertas. Com uma poética darwinista, eu diria, as mudanças genéticas/biológicas estão imbricadas com a aprendizagem de casa e do convívio social no seio da cultura. E o herói, mesmo sob o peso da utópica responsabilidade de salvar a "América norte-americana", chora sem qualquer receio de transparecer que também é vulnerável.

É brincando com estas e outras visualidades contempoprâneas, que me rodeiam e flutuam em torno de mim, que entendo o quanto elas também configuram o que sou, trançando relações de afeto, prazer e poder. Com elas me pergunto: Por que tais imagens me atravessam de modo tão peculiar? O que elas dizem de mim? Permitir isso não seria prejudicar minha reputação de futuro doutor? Embora eu me relacione com elas, quer expresse isso ou não, a que custos eu negaria ou manteria isso trancado na solidão do meu quarto?  

Lembro-me da cômica descrição de Felipe Gutiérrez, publicada nos trechos de livros da Folha de São Paulo, sobre o que é ser um escritor cult: inovador e contra todas as correntes literárias do momento, hermético para seus contemporâneos, publicar pouco e melhor ainda se depois de morto, negar-se a entrevistas, usar pseudônimos, levar uma vida licenciosa e turbulenta, habitar o submundo e flertar com a morte. Isso me enreda com a fala de um conhecido que recordava uma cena do seriado "Glee", onde Emma, a orientadora da escola, após aconselhar os alunos a não se lamentar por amor, aparece trancada no carro chorando e cantando "All by myself". Com isso, perguntava ele: De que adianta fazer a linha cult se quando terminamos uma relação choramos ouvindo "Nuvem de lágrimas" da Fafá de Belém?" Ou seja, de que adianta primar pelos discursos elevados e pela erudição se somos tão pop e lamentamos nos aproximando daquilo que mais fala dos nossos pesares?

A meu ver, a licenciosidade e hermeticidade do escritor cult soam de par com a cena da orientadora "faça o que digo e não o que faço" e a pergunta em torno dela. Somos eruditos e populares na mesma toada. O que conseguimos, por vezes, é disfarçar isso no convívio. Mas entre as paredes dos nossos cantinhos subjetivos, fachados de risos amarelos ou irônicos, deslizamos de Beethowen a Paula Fernandes, de Hitchcock a James Cameron na boa, lamentando-nos como pássaros feridos por um épico naufrágio.  E o bacana é que não precisaríamos nos envergonhar disso. Piegas são alguns trechos dos discursos classificatórios e divisórios de Adorno e Horkheimer, não os modos como usamos e nos damos conta do afeto que investimos para com esses produtos culturais.

Há dias algumas imagens e falas me interpelam... Elas trazem gotas de lágrimas e de chuva... Umedeço e tranço com elas, um jeito bom de existir que me faz organizar a vida entendendo como cotidiano desde os assuntos acadêmicos até as amenidades e fazeres frugais do dia a dia. Nada escapa dessa desierarquização travessa e perspicaz que o corponectivo que sou articula prazeirosamente.

Imagens capturadas aquiaqui e aqui.

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