Além das atrocidades proferidas por feliciano, “Secret
Project Revolution” também me remeteu a fatos como a violência da Polícia Militar
do Rio de Janeiro que, em 28/09/2013, agrediu violentamente professores/as que
manifestavam exigindo melhorias em sua carreira, aos desmandos do STF em julgar
e punir os ladrões engravatados do mensalão, à desvalorização dos educadores da
rede municipal (que entraram em greve em 24/09/2013) por parte da prefeitura de
Goiânia/GO e a tantos casos de agressão, desrespeito e intolerância nos quais facilmente
seres humanos discriminam, ferem a dignidade e tiram a vida um do outro. Estas
e outras situações estarrecedoras relacionadas ao referido filme me trazem a
pergunta (que até parece clichê): Para onde estamos caminhando, queridos
compatriotas humanos?
Criticada por ser rica, exibicionista, branca, mulher, ingênua,
oportunista, etc., e propor reflexões e ações que podem levar a transformações no
cenário de intolerância que se espalha pelo mundo, Madonna trás essas críticas
para o filme, questionando o fato de, porque sendo ela mulher, loira, artista,
não poderia ter atitudes revolucionárias. Em imagens extremamente bem criadas e
articuladas e um uso cuidadoso da dança como metáfora, o filme, que prega uma
revolução do amor, também é composto por uma narração na voz de Madonna. Ela
expressa experiências e percepções vividas ao longo de sua turnê mundial em
2012, sua indignação, críticas que recebeu, sua vontade incessante e crescente
de combater as injustiças e de unir mais pessoas nesse projeto que também visa
(re)pensar o que é a liberdade de expressão.
No primeiro contato com o filme, o discurso/narração me
pareceu tirar o foco das imagens ou querer explicá-las. Percebi mais a
necessidade de Madonna falar do que, propriamente, a potência das imagens e da
dança em questionar e instigar significados. Outras aproximações possibilitaram
perceber afinidades, desencontros e fricções entre texto/fala e imagem/dança. O
“Secret Project Revolution” está inserido num projeto maior chamado “Artforfreedom”,
onde outros artistas são convocados a se manifestar acerca do que pensam sobre
liberdade, preconceito, violência, etc.
Ao dizer “sou mulher, sou loira. Eu tenho peitos e bunda e
um desejo insaciável de ser notada”, Madonna relembra que quando (na MDNA World
Tour - 2012) ficou só de lingerie no palco e mostrou a bunda, alguns gostaram e
outros acharam obsceno. Ela complementa dizendo que julgar a compaixão e temer
o amor, isso sim é obsceno. Nesse momento do filme, uma voz forte e convocadora
proclama: “Show your ass” (mostre sua bunda), o que me remete ao discurso moralista
e inescrupuloso de m. feliciano ao dizer que católicos tem o corpo entregue à
prostituição e todas as misérias humanas.
Me pergunto o que de fato ele entende por corpo e imagino as
atrocidades que viriam na resposta a esta pergunta. Penso se ele tem refletido
sobre o termo “prostituição”, principalmente em tempos onde se discute sua
legitimação enquanto profissão. E o que seriam “as misérias humanas” a que ele
se refere? E porque agora atacar os católicos? Seria receio de perder fieis
para o carisma do Papa Francisco? Quão obscenas e desumanas considero as
palavras de quem se propõe líder religioso ao passo que condena umas pessoas
pela sua cor, raça, identidade, gênero, e imbeciliza outras com discursos moralistas
e amedrontadores. Diante de ideias e atitudes assim, resta dizer: “Show your ass”,
é menos vergonhoso e menos obsceno.
Falando em católicos, é intrigante ver membros de igrejas
cristãs pentecostalistas repetindo discursos, condenações e atrocidades que a
igreja católica fazia lá na idade média com mais estilo, convenhamos, pois
certas performances “pastoricidas” estridentes são um descalabro. E falando em prostituição, muito mais obsceno
do que um corpo que presta serviços sexuais, e cobra por isso, é um corpo que berra
e vomita discursos excludentes e discriminatórios atribuindo isso à vontade
divina.
Madonna recorda ainda, em seu filme, que Jesus, Buda, Maomé,
Moisés, entre outras celebridades religiosas, discursavam e agiam tendo em
vista o amor entre as pessoas, sem usar a religião para fazer mal aos outros.
Instigante o fato de uma artista pop, taxada de exibicionista, vadia, marqueteira,
entre outros atributos, nos recordar dessa máxima religiosa e humanista. Se o
corpo é pra louvar a Deus, como prega o pastor, e se Deus é amor e autor de
todas as formas de vida, o corpo de quem viola os direitos humanos está longe
disso. Penso que se certos líderes religiosos
refletissem teologicamente, com sensibilidade e mais cautela intelectual, sobre
o texto/poema bíblico da criação, poderiam talvez entender que, se Deus fez
mulher e homem como corpos e disse que isso é sua imagem e semelhança, o corpo
(com peitos, bundas, outros adereços e variadas cores, gêneros, identidades e
orientações sexuais) é imagem divina.
Ao elucidar o medo da
diferença como algo que leva à intolerância, em seu filme, a santa e pecadora Madonna
ainda ironiza, provoca e invoca um discurso acerca do corpo dizendo: “Vem cá,
baby, mostre a sua bunda. Mexa pra gente. Faça aquela dança que você faz tão bem,
baby”. O convite a mostrar, mexer, dançar, me faz refletir outra vez sobre o
que é SER CORPO, a desmistificar pregações imbecilizantes que veem o corpo como
um saco de pancadas, como bode expiatório de pecados e louvores inventados,
como instrumento submetido aos ditames de discursos e instituições
dualistas/espiritualistas que desconsideram sua materialidade, humanidade,
sexualidade. Conclamar os diferentes corpos a se amarem e a se importar com o
bem comum seria menos obsceno que certos impropérios em forma de pregação.
Por Odailso Berté
Doutorando em Arte e Cultura Visual - UFG
Mestre em Dança - UFBA
Licenciado em Filosofia - UPF