28 de agosto de 2013

"Só a bailarina que não tem", ahãm, Cláudia...


Francine Piaia fazendo 'quadradinho de oito' vestida de bailarina
 
Certo dia me deparei com um cartaz, colado num poste, que dizia: “Contrata-se dançarinas (sem experiência)”. Isso me remeteu à correção que recebi de uma pessoa quando eu escrevia uma crítica de dança e chamava as artistas do referido espetáculo de “dançarinas”. A correção se deu no sentido de que eu não poderia chamá-las assim, pois dançarina é quem dança em boates, bandas, programas televisivos... Nessa forma de pensar, o correto, para quem é profissional da dança, seria “bailarina”. [Ahãm, Cláudia, senta lá...].
O cartaz e a correção podem ascender questões pertinentes para se refletir em torno da DANÇA como arte, profissão, área de conhecimento. Uma mácula parece acompanhar a dança e o corpo ao longo dos tempos, aproximando-os do sexo, do desejo, da sensualidade, como se fossem pecados, sujeira, impurezas. Daí, talvez, ainda derivem, no imaginário de muitos/as, as imagens equivocadas de dançarina/o como puta/o, promíscua/o, lasciva/o.
Pensando na história da dança cênica ocidental, o balé, ou a dança clássica, foi a primeira técnica de dança codificada (Eugênio Barba, 1995). Nascido na corte do rei Luís XIV, esta modalidade de dança – e não base para toda a dança – é o que de mais erudito ainda se cultua no campo da produção de dança e na preparação de profissionais de dança. O balé ainda é tomado como referência suprema que determina e até “purifica”, sacraliza o que seria a boa dança, longe de promiscuidade e lascívia. Não à toa este estilo de dança foi e é tomado como instrumento de disciplina e boas maneiras. Curiosamente, foi o único estilo de dança permitido por Hitler, durante o regime nazista.
As imagens da bailarina [princesa, fada, sílfide], ser sobrenatural e esvoaçante, “que não tem pereba, pecado, namorado, sujeira, irmão zarolho, remela, piolho...”, como diz a canção de Edu Lobo e Chico Buarque, contrastam com imagens de dançarinas de funk, de streapers, das dançarinas do Faustão, de quem usa formas de dança como estratégia de atrativo sexual, entre outras. Na imagem acima, a ex-BBB Francine Piaia faz o "quadradinho de oito" vestida de bailarina, uma atitude que pode ferir os sentimentos de quem sacraliza o balé em detrimento do funk e outras danças que evidenciam o erótico, a sexualidade e o prazer. De fato existem diferenças nas funções, ações, danças que esses corpos desempenham. Todavia, me inquietam os preconceitos, os receios, os equívocos em torno dos termos “dança”, “dançarina/o”.
O termo “dançarino/a” surge por volta do século XVIII, provavelmente calcado do termo italiano “ballerino/a” (Antônio Cunha, 1986). Segundo a Classificação Brasileira de Ocupações – CBO, no grupo “artistas da dança” compreende-se bailarinos, dançarinos, coreógrafos, dramaturgos, assistentes, ensaiadores e professores de dança (Carla Morandi, 2010). Suas competências, de acordo com cada função, compreendem concepção/concretização de projetos cênicos de dança, criação de obras coreográficas, realização de apresentações públicas, preparação corporal, pesquisa de movimentos, ensaios e ensino de dança. Sobre a formação e experiência, embora ainda não seja exigência, estas seguem a tendência mundial no campo das artes baseada na formação por meio de curso superior na área.
A dança, vista/pensada/executada como arte, profissão, área de conhecimento, abarca questões e possibilidades artísticas, expressivas, educacionais, de saúde, bem estar e relações sociais. Tratar de dança é tratar de um fenômeno, uma ação cultural que transpõe os limites das conhecidas sistematizações e classificações. A dança está nos palcos, nas academias, nas salas de aula e para além destes espaços. A dança está presente no cotidiano sociocultural, seja como arte, linguagem, forma de comunicação, lazer, entretenimento, área de conhecimento, evento social, elemento de festas, bailes, celebrações, shows e rituais, podendo envolver relações de afeto, prazer, saber e poder.
Interpretando o termo “artista da dança”, penso que os receios em torno do termo “dançarino/a” carregam uma falta de compreensão da abrangência que a dança possui, além de preconceitos classistas/elitistas/puritanos que aumentam os abismos entre as “danças da corte” (eruditas/alta cultura/arte) e as “danças da plebe” (populares/de massa/midiáticas/entretenimento). Elementos de dança perpassam estes diferentes ambientes, compostos por diversos corpos-sujeitos e variados modos de usar/fazer/entender dança. É um equívoco pensar que só podem ser entendidas como DANÇA (boa dança - arte) as danças eruditas, da alta cultura, do sistema das belas artes e também as folclóricas e tradicionais.
As diferentes formas de dança e de uso da dança não devem ser niveladas, nem vistas sob os mesmos ângulos e olhares. Cada estilo de dança e cada profissional da dança merece a devida consideração em relação a sua história, trajetória, formação e experiência. Para quem somente dança balé, penso que o termo que melhor o/a identifica, se assim preferir ser chamado pelo estilo ao qual se dedica, pode ser “bailarino/a”. Para quem dança e faz da DANÇA sua área de atuação, profissão, formação, criação, independente de ser dança clássica, moderna, contemporânea, de salão, de shows, de pole dance, em boates, no teatro ou no programa do Faustão, às favas o receio/preconceito de ser chamado/visto/reconhecido como DANÇARINO/A.

Odailso Berté
Dançarino, coreógrafo e pesquisador em dança contemporânea
Doutorando em Arte e Cultura Visual - UFG
Mestre em Dança - UFBA
Especialista em Dança - FAP
Licenciado em Filosofia - UPF

Imagem capturada aqui.