São muitas as imagens que se entremeiam em mim, agora. Escrever sobre elas e as situações que as envolvem é um desejo que não para de beliscar-me. Não estabeleci uma ligação satisfatória entre estas situações e imagens. Não penso que isso seja necessário. Tem algo latente nelas que impele a escrita. Acabo de ler a carta de Jean Wyllys à Eduardo Cunha. Há dias, assisti aos episódios da temporada única da série brasileira "Sexo e as Negas" (2014). E estou assistindo à segunda temporada (e última) da série norte-americana "The Carrie Diaries".
A carta de Jean a Cunha, publicada na Revista TPM (Jul. 2015) é um tapa com luva de pelica tigrada. A irreverência e a competência da 'beesha' em apontar o fascismo e as incongruências nas atitudes pseudo-políticas e pseudo-cristãs do destinatário da carta, são de uma precisão incontestável. A carta (co)move sentimentos e posicionamentos ao chamar para o diálogo - amoroso e exigente - alguém, como tantos outros, que tem feito da política um palco demagógico de manipulações, mentiras, ganância e imbecilização de pessoas por meio da fé. Admiro essa capacidade inquieta e sagaz de cutucar a onça com a vara curta, dura e colorida. Mesmo não sendo ele drag queen, vejo em Jean aquilo que RuPaul busca nas competidoras de seu reality show:
charisma, uniqueness, nerve and talent. Apesar da homofobia, há homens e mulheres que, com mais ou menos possibilidades, têm se expressado e se empenhado em reconhecer e fortalecer a dignidade de homens e mulheres diferentes. Pela orientação sexual, pela formação de "PJoteiro" e por vários princípios políticos e humanistas, vejo em Jean tantas possibilidades de identificação. Fazendo uso de suas próprias palavras, na carta, afirmo: Jean é uma das "referências positivas" às gerações mais novas, que lhes permite e incentiva a "viver sua orientação sexual sem vergonha e com orgulho".
Também foi o Jean quem me fez questionar a não continuidade da série global "Sexo e as Negas". Sou cada vez mais convicto da reflexão do teórico cultural e sociólogo Stuart Hall sobre os significados não estarem nos artefatos, nas imagens, mas em nós que os vemos e nos contextos onde estamos inseridos, que influenciam nossas formas de ver e significar. Só assim, tento compreender a reação contrária de muitos a ponto da série ser cancelada. É surpreendente como ainda não conseguimos compreender a ironia, a possibilidade de abordar determinadas situações sem dar moral da história e significados predeterminados. Machismo? Preconceito? Racismo? Sim, eram abordados na série de modo perspicaz e bem humorado, com o protagonismo de quatro mulheres negras suburbanas e suas relações afetivas e sexuais. Semelhantemente à inspiradora série norte-americana "Sex and the City", sexo, nesta série, não remetia à pornografia e à exploração, mas aos relacionamentos afetivo-sexuais e às vivências cotidianas que em torno deles se desenhavam. Diferentemente das opiniões reacionárias, vi as negas e seu sexo, como sinais de contravenção, como imagens de provocação que forjam e criam novos espaços na mídia e em nossos imaginários. Imagens e espaços outros que borram aqueles das senzalas de Sinhá Moça, das favelas e das cozinhas de tantas outras novelas. Pensando que cada um constrói o significado, fico com a imagem de negras lindas, audaciosas, tão valorosas e dignas de amor e respeito. Personagens as quais eu gostaria que fossem reais, das quais eu gostaria de ser amigo. Por isso, saudade de "Sexo e as Negas".
Também a série "The Carrie Diaries" foi cancelada prematuramente, na segunda temporada. O sucesso da série norte-americana "Sex and the City" e sua protagonista Carrie Bradshaw levaram Candace Bushnell (autora do livro que inspirou a série original) a escrever outros dois livros que narram a trajetória da jovem Carrie antes do sexo (seus relacionamentos) e da cidade (sua paixão por New York). Esses dois novos livros "Os diários de Carrie" e "O verão e a cidade" inspiraram a criação da nova série "The Carrie Diaries". Ambientada, de modo fascinante, nos anos 80 dos USA, a série transpira elementos dos costumes, da moda, da arte e cultura local daquele período. Cenas como uma festa onde Madonna está prestes a chegar, os bastidores da revista Interview e situações hilárias envolvendo a peruca de Andy Warhol, entre tantas outras, formam um enredo envolvente sobre a adolescência e juventude de Carrie e seu
american dream: tornar-se uma grande escritora e encontrar um grande amor em New York. Infelizmente, a baixa audiência fez com que a série fosse cancelada. Carrie foi derrotada por heróis, zumbis e vampiros e seu poder de audiência.
Apesar de também gostar de heróis, zumbis e vampiros, não me furto a perguntar: por que temos dado mais audiência a esses seres e suas catástrofes do que aos relacionamentos e aos afetos? Que estágio humano e cultural é esse que atingimos em que as emoções, os dramas e os romances perdem lugar para as tensões, os medos e sobressaltos? Por que assistir situações afetivas, semelhantes às nossas, parece ter se tornado algo enfadonho? Por que as personagens e situações mais irreais parecem ser mais excitantes? E saindo da TV, como os vampiros e falsos heróis, disfarçados de políticos, em nosso país, conseguem a tamanha audiência que os mantém em seus postos? Como podem os discursos fajutos de bondade desses vilões convencerem a tantos?
Recordo de uma passagem de Stephen Rebello, em seu livro sobre os bastidores de Psicose, ao comentar que, nesse filme, de 1960, o monstro é um humano comum, a maldade está dentro de casa, o matador é alguém da família. Esse tipo de produção artística que reposiciona nosso cotidiano diante de nossos olhos sempre me toca de maneira especial. Penso também que os heróis, zumbis e vampiros das séries podem ser metáforas potentes, imagens plurissignificativas, a depender de como os vemos e interpretamos. Já os vampiros sugadores que têm assento no congresso nacional, a exemplos dos que Jean Wyllys costuma criticar, precisam ser exterminados e sua audiência precisa ser despertada dos feitiços, hipnoses e bençãos que a imbeciliza. Oxalá nossa capacidade interpretativa nos possibilite usar e analisar os personagens que consumimos, dando-lhes significados que ressignifiquem nossas vivências cotidianas.
Quando sexo tem a ver com política... Num dos episódios da série "Sex and the City", Carrie namora um político de Manhattan. Ao negar-se a realizar uma das fantasias sexuais do nobre político (mijar nele durante a relação sexual), Carrie tem seu namoro rompido. Ao romper, o político alegou que namorar com uma colunista de jornal que escreve sobre sexo e relacionamentos não era bom para sua campanha e imagem pública. Mijar nele, sim. Escrever sobre sexo, não. Tudo e todos que expressam de modo mais aberto traços de nossa humana sexualidade - principio da vida e do prazer - causam diversificados tipos de frenesi. Sexo ainda é tabu, é visto como sujeira, precisa ser mantido no privado. As tantas e reais sujeiras feitas com a política, os direitos humanos, os cofres e os espaços públicos, crescem e se multiplicam sem qualquer preservativo, precaução, cuidado.
Dessas anotações e imagens, fica a saudade das Negas, da Carrie e seu sexo divertido, bonito e digno, suas relações e vivências tão semelhantes às nossas. Fica a saudade de séries como Sex and the City, Friends, Six Feet Under, One Tree Hill, Brothers & Sisters e tantas outras que davam a ver as relações humanas e cotidianas sem tantos artifícios. Ficam apelos para que mais defensores das minorias sexuais, como o Homem Maravilha (codinome dado a Jean Wyllys no BBB 5), possam se expressar e fazer política de modos mais honestos, benéficos e transparentes.