22 de março de 2010

Uma maçã que era engenheiro: outro fruto não proibido da contemporaneidade

O engenheiro virou maçã e nos arrastou para o paraíso da cotidianidade que, mesmo com sua imensidão, consegue caber numa sala de estar. Visitantes/espectadores das mais variadas condutas assistiram/participaram da versão reduzida da obra "O engenheiro que virou maçã", concebida por Rita Aquino e Duto Santana, apresentada no dia 20 de março no Cine-Teatro Solar Boa Vista de Salvador/BA.

Essa digna homenagem para Pina Bausch, como pretendido pelos seus criadores, sem reproduzir nada do que fez a homenageada, consegue, no entanto, colocar, o espectador, como ela fazia, num patamar de produção de múltiplos e afetivos sentidos. Mesmo só sabendo dessa homenagem depois, o durante da obra transpirava um odor bauschiano repleto da originalidade dos corpos que a conceberam.

A obra provém de um coletivo de construções compartilhadas que exacerba seu ineditismo no simples fato de recortar da vida uma sala de estar onde os artistas vivem/são/estão/atuam durante a execução da obra. A sinceridade cotidiana, sem caricaturas de representação cênica e sem cargas de texto ou movimento, sutiliza a delícia e o nojo de sermos humanos. Retezamentos, epilépticas preces, tímidas buscas de carinho, atenções concedidas e negadas, indiferenças, proximidades e fotográficas lembranças convivem entre a mobília doméstica.

Qualquer espectativa de previsibilidade era subvertida pela flexibilidade com que os gestos e expressões, tal qual leve correnteza, (des)construíam-se podendo ser isso, aquilo ou aquele outro, permitindo ao público uma enamorada e democrática criação de sentidos na medida em que se relacionava com as cenas.

Mesmo por detrás de uma grade (que já era parte do espaço onde a obra foi instalada), as situações cênicas eram captadas como um domínio público. Não só pela proposta interativa, era possível ver cada espectador, a seu modo, encontrar-se na obra, dado que, nenhum abismo separava a "vida cênica" da "vida real", era tudo a mesma vida. Crianças, adolescentes, adultos e idosos dialogavam com a obra, conversando, perguntando entre si, dizendo um para o outro suas interpretações, refletindo em simultâneo com a obra. Isso faziam com tal propriedade/dignidade/simplicidade às vezes escassa nos ambientes da academia e da crítica de arte. Uma crítica empírica e "leiga" mostrando que nem todo o senso comum é tão comum quanto se pensa.

Aquela dança na qual todos viam as sua próprias situações, não ditas, malditas, benditas, sem nenhum palavreado, ficará cravada nos corpos daquelas pessoas que podem nunca terem se imaginado ganhando um copo d'água de uma dançarina em cena, atuando junto, sendo a arte também. Prestigiando e compondo parte daquela dança "sem cara de dança".

Isso foi uma digna situação da arte contemporânea que, despretenciosamente, propaga seu sadio veneno através dessa deliciosa maçã que era engenheiro. Essa maçã, que era engenheiro, não é um fruto artístico proibido, pode ser comida, degustada, bebida, sentida, abraçada, entendida, mal interpretada e até ignorada. É um artefato cultural aberto à pesquisa, à interpretação. Assim sendo, essa fascinante maçã, que era engenheiro, interpela os ditames da divindade artística clássica, poderosa em criar abismos entre a arte e a vida. Todavia, essa e outras maçãs contemporâneas não podem mais ser explusas, pois já se tornaram parte do paraíso - espaço/tempo - de agora.

Fotos de João Meireles

4 comentários:

  1. Meu, tem como eu ver isso?
    Sei lah, quem sabe um video?
    :S

    ResponderExcluir
  2. Olá Odailson
    uau..adorei o texto. aliás, um dos melhores que li nos ultimos tempos, sobre dança contemporânea. traz uma dose acertada de poética e atinge muitos pontos fundamentais, sem bla bla bla nem precisar falar dificl. parabéns pela bela escrita.
    do la de cá...me fez sentir mais saudade desse povo especial do construções compartilhadas.
    com quem tive o prazer de compartilhar alguns movimentos e aprender mais...pois participei do processo na criação da trilha sonora, em parceria com edbrás. por agora estou morando em sp, vislumbrando as possiblidades dos novos encontros , que hao de vir!
    saudações dançantes :)
    Nãna Dias

    ResponderExcluir
  3. Olá Odailson
    uau..adorei o texto. aliás, um dos melhores que li nos ultimos tempos, sobre dança contemporânea. traz uma dose acertada de poética e atinge muitos pontos fundamentais, sem bla bla bla nem precisar falar dificl. parabéns pela bela escrita.
    do la do de cá...me fez sentir mais saudade desse povo especial do construções compartilhadas!
    com quem tive o prazer de compartilhar alguns passos e aprender mais...pois participei do processo na criação da trilha sonora. por agora estou morando em sp, vislumbrando as possiblidades dos novos encontros , que hao de vir!
    saudações dançantes :)

    Nãna Dias

    ResponderExcluir
  4. Oda, reencontrei o texto. Estou lidando de novo com o trabalho, para apresentarmos na semana que vem, na PID. Estivemos aí em Rosário na Argentina, e parece que continua viva essa convocação de experiência para as pessoas que você fala. Que bom que você falou: posso reencontrar a obra, a cada momento que precise, também no trajeto do seu olhar escrito.

    Abraços,

    [agora] Eduardo Rosa

    ResponderExcluir